No país, não é raro encontrar propostas “moralizadoras” do exercício da liberdade de expressão. São exemplos a “lei da mordaça” e a proibição da publicidade infantil. No debate a respeito da última, afirma-se que a liberdade de expressão não compreende a publicidade. Trata-se de claro engano. A publicidade política, a publicidade religiosa, a publicidade esportiva são claros exemplos do exercício da liberdade de expressão. A moralização de alguns temas não é novidade. No passado, já foram moralizados e proibidos no Brasil o divórcio, a filiação ilegítima, o trabalho feminino, a homoafetividade, o ateísmo. A título de moralização, ofende-se a razão.
Numa democracia não se deve optar por “meio direito de expressão”. A liberdade de expressão num país como o Brasil, cuja história é permeada por espasmos democráticos em meio a grandes períodos com governos centralizadores, é fundamental. Mais um motivo para não deixarmos o pânico moral restaurar a censura. Não há dúvida a respeito da necessidade da proteção e da educação das crianças. Como todo grande tema da sociedade, há consenso a respeito disso; o problema só está no grande dissenso a respeito de como fazê-lo. Para alguns, a proibição da publicidade é a solução. Para outros, a autorregulação é o caminho.
Quando se pensa em proibir a publicidade, lembra-se da obesidade, da erotização precoce e da violência. Mas, no cenário, se esquece do estilo e das decisões alimentares das famílias (praças de alimentação), da erotização disseminada na sociedade (carnaval, novelas, reality shows) e o fato de que a violência tem a sua lógica e estratégia (as circunstâncias favorecem os benefícios em detrimento dos custos). Humanos são violentos por competição (roubo, v.g.), por falta de autoconfiança ou insegurança (prevenção) e, por fim, por glória e respeito (a famigerada cultura da honra). Por isto, a pergunta é: além de proibir a publicidade, para proteger as crianças, nós também devemos fechar as praças de alimentação, encerrar todos os reality shows e impor a pena de morte para todos os crimes para, de uma só vez, aumentar os custos de todos eles?
Decisões de consumo
Como todo questionamento absurdo, a resposta óbvia é não. Com isto, pretende-se chamar a atenção para o fato de que a proibição singela traz consigo os resultados de soma-zero, colocando em risco a liberdade de expressão como um todo.
A publicidade é uma das principais fontes de financiamento e manutenção de uma mídia independente e investigativa numa democracia. Por sinal, não se conhece um Estado democrático sem mídia financiada com recursos privados. Em outro sentido, são conhecidos os Estados autoritários onde o financiamento da mídia é basicamente oficial e muito regulado. No caminho da liberdade de expressão, confira-se o sucesso do Media Development Investment Fund, fundado em 1995 por dois jornalistas para financiar a operação independente da Rádio B92 de Belgrado durante o regime opressivo de Milosevic e da guerra dos Balcãs, quando as outras duas únicas opções eram fechar a rádio ou se engajar na propaganda oficial.
Ainda, considere-se que há decisões de consumo inteiramente dissociadas da publicidade. Ou seja, o ser humano procura se diferenciar. A professora Teresa Ancona lembrou há alguns anos que não havia qualquer publicidade para tatuagens, mas mesmo assim seus alunos e familiares, em profusão, estavam se entregando às tintas. Nos grandes centros, o uso de roupas de marcas sem qualquer loja ou publicidade no país não é raro (Abercrombie, v.g.).
Discurso oficial
Deve-se pensar em uma solução cujo resultado é um jogo de soma positiva, no qual todos os agentes envolvidos podem incrementar os seus ganhos ao mesmo tempo. Isto não está contemplado no Projeto de Lei n. 5.921/2001 e passa, necessariamente, pela autorregulação. Não passa pela simples regulação porque a experiência demonstra que governos não gostam dos seus opositores e, quando são pressionados ou condenados pela opinião pública, preferem culpar a mídia e direcionar a publicidade oficial para os amigos.
Como exemplo de soma positiva para a sociedade, muito mais importante do que proibir qualquer publicidade é garantir que toda publicidade não será enganosa, no sentido de não prestar informação falsa. Os mecanismos para isto já estão no lugar e prontos para o uso há anos (v.g. o CDC, o CP, o Conar). Proibir publicidade e retirar da mídia investigativa e independente as suas fontes de financiamento privado vai nos levar a um caminho indesejado e já conhecido; a preponderância do discurso oficial bancado pela sua publicidade.
Dentro do feixe de meios para o exercício da liberdade de expressão pelo cidadão está a publicidade, cuja moralização pode prejudicar a todos, inclusive as crianças.
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[Marcelo Moscogliato é membro do Ministério Público Federal em São Paulo]