Na introdução do presente texto, antes de me deter no seu ponto fundamental, recorro aos postulados dos estudos sobre a produção de informação presentes em obras (WOLF, 2006) que tratam da Sociologia dos Emissores (newsmaking), para lembrar que eles correlacionam o conteúdo do jornalismo com o trabalho de seleção de notícias e colocam em evidência um tipo de “deformação” nos conteúdos informativos não imputável a violações da autonomia profissional, mas sim, ao modo como é organizada, institucionalizada e desempenhada na profissão de jornalista.
A partir desse pressuposto, que indica os critérios fundamentais que guiam a seleção dos eventos e sua apresentação, passo a tecer uma análise a respeito do lamentável episódio, recente, em que a direção da TV Universitária do Rio Grande do Norte (TVU) foi, injustamente, acusada de censura numa matéria que abordava interesse dos educadores do estado, tema recorrente na pauta do telejornalismo da emissora (ver, neste Observatório, “Matéria sobre educação é censurada”).
Certamente, o desconhecimento das rotinas jornalísticas pelo público pode, à primeira vista, fazê-lo aderir à orquestrada proposição “censura na TVU”. Mas não saberia dizer, embora suspeite, o que impede os mais afeitos às teorias da comunicação e aqueles que vivenciam a prática jornalística cotidianamente a adotarem uma adesão semelhante. E se isso também sugere reflexões no campo da ética, área que me é tão quista, opto por não fazê-lo e circunscrevo-me tão somente ao campo da comunicação.
Matéria incompleta
A esses cabe lembrar que a edição da matéria sofrera apenas os efeitos do funcionamento daquilo que WOLF (2003) menciona como “distorção inconsciente”, um procedimento ligado às práticas profissionais, às rotinas de produção normais, aos valores compartilhados e interiorizados sobre as modalidades de desempenhar o ofício de informar.
WOLF (2003) destaca que a “distorção inconsciente” (unwitting bias), enquanto um elemento que entra em jogo na dinâmica da produção diária de notícias, pode prejudicar alguns aspectos de uma matéria, em favor de outros. De fato, houve esse prejuízo, pois, no caso da matéria, os telespectadores da TVU deixaram de ter a acesso à opinião “do outro lado”, o da secretária de Educação do Estado do Rio Grande do Norte, que não atendeu à reportagem da emissora, forçando a que fosse ao ar, na matéria motivadora da polêmica, apenas a versão da entidade classista laboral.
Sem “ouvir o outro lado”, como aconselham os cânones do jornalismo, e para não incorrer numa suspeição ainda maior de “censura”, a qual seria se tivesse excluído a matéria incompleta, autorizei, enquanto diretor da TVU, a veiculação da matéria incompleta. Como todas as outras daquela edição (e das demais edições diárias) do telejornal da emissora, a matéria passou por uma etapa de edição comum a todo material bruto capturado “na rua”.
Teia diabólica
Acentuada por indisposições e tensões inerentes a qualquer ambiente de trabalho, a edição da matéria incompleta e apenas com a versão da entidade classista laboral desagradou o pauteiro do telejornal, que enxergou nela uma forma de censura, e no uso da sua liberdade de expressão lançou um texto falacioso nas redes sociais assacando de inverdades a respeito de submissão de dirigentes da instituição a pressões externas para que a matéria não fosse ao ar.
Por motivações que merecem ser elucidadas em outro momento, o tom denuncista do texto apresenta um viés complicado de inferências concernentes aos processos de produção de notícia e contém carências explicativas. Todavia, como um “sinalizador incendiário”, provocou perdas e danos, à medida que seu teor se propaga, irresponsável e inadvertidamente, pelas redes sociais e outras.
A partir daí, o que se viu foi uma avalanche, ora precipitada, ora oportunista, de aderência à proposição “censura na TVU”, contra a qual a nota explicativa da direção da TVU, lançada logo em seguida, teve pouco efeito ou a mesma receptividade por parte daqueles que estabeleceram a polêmica, ainda mais quando a ela não fora dada a mesma visibilidade do texto primeiro. Pelo contrário, no caldeirão das redes sociais, não demorou até que a direção da TVU fosse levada a uma lamentável execração pública, comprometendo a imagem de um profissional, servidor da UFRN e de uma emissora que completou 40 anos.
Acusada de um crime que não cometera, a direção da TVU viu-se enredada numa teia diabólica e condenatória, semelhante àquelas que já vitimaram muitos outros, ressalte-se, injustamente, mas com perdas irreparáveis, como foi o caso emblemático da Escola Base.
Idiossincrasias, oportunismos e inconsistências
Envolvido diretamente neste episódio, pois, como diretor da TV Universitária, respondo pelos encaminhamentos editoriais e administrativos desse veículo de comunicação, tenho a consciência tranquila quanto ao tratamento editorial dado à reportagem aludida. Do mesmo modo, enfatizo não ter sofrido quaisquer pressões e influências superiores e externas e que também não teria motivos políticos ou de qualquer outra natureza para, deliberadamente, promover restrições ao teor da matéria. Reforço e reitero: houve uma edição técnica da matéria e o que se espera é que as críticas devam se circunscrever a esse aspecto, e não sob a pecha oportunista de “censura”, enquanto um valor tão caro à sociedade.
Portanto, movido por essas minhas convicções e crenças, assim como respaldado por uma sólida formação no campo da Ética e da Comunicação Social, e agora, como diretor da TVU, evidencio a supracitada perspectiva teórica para levar em conta, na análise desse episódio, tão-somente fatores organizacionais ligados à estruturação dos processos de produção e elementos mais específicos de comunicação, ou seja, intrínsecos à movente peculiaridade da “matéria-prima” trabalhada antes de ir “ao ar”. Dito de outra forma, prefiro me vincular à abordagem inicialmente citada da “sociologia dos emissores”, que a mim parece mais clara e profícua, para contrapor o fácil e precipitado discurso levado às redes sociais. Postura que, por sinal, se espera de quem, diferentemente de mim, afiança dominar mais essa abordagem.
Por fim, lamento que uma emissora pública, como a TVU, pague o preço por idiossincrasias, oportunismos e inconsistências daqueles que, desse modo, juntam-se a segmentos da imprensa e de setores conservadores da sociedade que insistem em boicotar a consolidação de uma rede pública de emissoras autônomas e comprometidas com a cidadania e uma TV vinculada a uma Universidade considerada a melhor do Norte-Nordeste.
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[Marcone de Oliveira Maffezzolli é jornalista e mestre em Ética e Metafísica pela UFRN e diretor da TV Universitária]