Na amazônia de textos provocada pela renúncia de Bento 16 há algo mais, e não percebido, do que as especulações, apreciações e, às vezes, notícias. Nunca o jornalismo, tanto impresso como por transmissão, tratou com tamanha liberdade um papado, a personalidade de um papa e a própria Igreja Católica. A despeito da sua riqueza de sentidos pregressos e de implicações presentes, a grandiosidade deste fenômeno é sinal e parte de uma grandeza ainda maior, que é a modificação dos costumes, ainda incompreensível na sua real dimensão – como demonstra o insuspeitado transbordamento de liberdade verbal suscitado por Bento 16, sem dúvida, à sua revelia.
Mesmo entre os “países católicos”, o Brasil é a presença mais novidadeira no fenômeno. França, Itália e Alemanha, baluartes do catolicismo e repositórios das correntes mais retrógradas da Igreja, valiam-se da sobriedade e da densidade para permitir-se alguma presença no jornalismo, informativa e analítica, das políticas da Cúria romana e da alta hierarquia católica nesses países. Isso, desde muito tempo. Nos Estados Unidos, a presença pouco significativa do catolicismo reduziu, quase a zero, o interesse da imprensa americana pelo tema. Ocasionais notícias de relevo, sim, e nada mais.
Na imprensa brasileira, o slogan da moda foi antecipado em muito tempo: “tolerância zero”. Desde que posso dar testemunho profissional e pessoal, quando João 23 oxigenou a Igreja com a redescoberta do cristianismo, no Brasil o cardeal Jayme Câmara e seu ponta-de-lança cônego Bessa impuseram uma regra simples: aqui, não!
Outra explicação
Mesmo para manter no Jornal do Brasil os dois artigos semanais do pensador católico Alceu Amoroso Lima (ou, como também se assinava, Tristão de Athayde), presidente do Centro Dom Vital de estudos católicos, foi uma batalha que, descrita hoje, pareceria invenção barata. O imenso “doutor Alceu” entregara-se a reflexões com as premissas simpáticas a João 23, como seria próprio da sua condição de maior intelectual católico daquelas décadas de 50 e 60. Apesar dessa estatura, ele e seus correligionários afinal perderam, mas não assisti à sua saída. Perdera antes dele, por aquela e por outras batalhas, estas no nível mais modesto que se limita ao jornalismo.
A grande engrenagem de populismo e culto à personalidade, que deu ao polonês João Paulo 2º a força para o seu ajuste de contas com os regimes comunistas, não incluiu a coerção tradicional praticada pela hierarquia clerical. Nem precisaria. Na maior parte do mundo, os meios de comunicação tornaram-se pequenos pravdas e izvestias para João Paulo 2º, como os dois jornais soviéticos projetaram o culto à personalidade de Stálin. O final penoso de João Paulo 2º e do seu papado estiveram ainda sob o clima dos 23 anos de suas conquistas emotivas. O que fugiu a esse clima avassalador, aventurando-se em alguma reflexão sobre o papado extinto e seus legados, foi muito pouco. E ainda é.
A personalidade Ratzinger do papa Bento 16 e as características do seu papado por certo contribuíram para que se arrebentassem os cadeados. Criaram, talvez, a vontade, mas a transformação da vontade em exercício, com a largueza de liberdade que se concedeu, precisa de outra explicação.
***
[Janio de Freitas é jornalista, colunista da Folha de S.Paulo]