“Se todo animal inspira ternura, o que houve, então, com os homens?” (Guimarães Rosa)
O século 20 foi sem dúvida o mais emblemático da história. Talvez pela intensidade dos acontecimentos, Eric Hobsbawm o chamou de o “breve século 20”. Acredito que o que mais chamou a atenção neste século foi seu caráter profundamente ambíguo, contraditório. Em todos os sentidos. Foi neste período que mais se exaltaram os valores humanos, como a paz, igualdade, generosidade, importância da preservação ambiental etc. Criaram-se, inclusive, instituições internacionais para a garantia de que tais nobres valores seriam assegurados. A criação da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1945 substituindo a patética Liga das Nações, é a síntese desta infinita boa vontade da humanidade em geral, e do Ocidente em particular.
Acrescente-se a isso a criação também de grandes estruturas narrativas de uma eterna luta do bem contra o mal, onde, mesmo depois de tanto sofrimento, o bem vence o mal e o crime nunca compensa. Sob a liderança dos Estados Unidos e dos estúdios de Hollywood, o mundo levou o conceito de maniqueísmo ao seu paroxismo. Evidente que este tipo de estrutura narrativa não foi inventado no século 20. Na literatura, e mesmo no teatro, isso já existia há séculos. Porém, é naquilo que Adorno muito bem conceituou como a indústria cultural, sobretudo no cinema, num primeiro momento, e na televisão, em outro, é que este maniqueísmo assume contornos nitidamente conscientes, isto é, intencionais e ideológicos.
Contudo, apesar de toda esta exaltação do bem e do amor desmedido ao próximo, o século 20 foi o mais cruel, mais sangrento de toda nossa história. Duas guerras mundiais, genocídios, campos de concentração de Hitler, Stalin e mais uma gama de tiranos assassinos. Trilhões de dólares em tecnologia bélica e uma incalculável concentração de riquezas nas mãos de poucos afortunados. Megaempresas cartelizando e controlando boa parte dos mercados mundiais – muitas, inclusive, superando a receita do PIB de inúmeros países.
Apenas um “observador atento”
Perto de seu final, este século ainda testemunhou os horrores da guerra da Bósnia com mais massacres, estupros em massa e genocídios. E, depois do fiasco do tal bug do milênio, iniciamos o século 21. As boas vindas ficaram a cargo da al-Qaida com os ataques às Torres Gêmeas, no coração financeiro do Império. O que levou à reeleição do não menos insano e terrorista George W. Bush, que efetuou a macabra mistura de ultra liberalismo econômico por um lado e a farra da indústria de armamentos por outro. Soube como poucos tirar proveito das características de uma sociedade extremamente neurótica, racista e belicosa.
Atualmente ainda vivemos sob o impacto da crise financeira global do ano de 2008. A bolha imobiliária nos Estados Unidos e a quebradeira geral na zona do euro, ameaçando não só o projeto de expansão e consolidação da União Europeia, como sua própria existência. Aliás, é digno de nota que tanto a imprensa hegemônica mundial quanto a nossa, com todo aquele blablablá, de um “economês” incompreensível para “explicar” a crise, se omitiram naquilo que é essencial: a atuação dos especuladores com bilhões de dólares e sem nenhum escrúpulo (que por aqui a imprensa chama de “megainvestidores”) e também a forte presença do crime organizado na vida e na política europeias, controlando e solapando importantes instituições. Episódio muito bem retratado e denunciado pelo filme sueco The Third Wave (Garras da Corrupção), de 2004, do diretor Anders Nilsson. Economistas e demais analistas respeitados chegaram a comparar esta crise com a grande depressão econômica de 1929.
Embora os efeitos desta crise não tenham sido “uma marolinha”, como disse o ex-presidente Lula, o Brasil, diferente de pouco tempo atrás, não sucumbiu à ganância desenfreada dos países ricos. Chico Buarque disse certa vez que o Brasil é o “país da delicadeza perdida”. Eu diria também das oportunidades perdidas. Evidente que querer analisar nosso país fora do contexto internacional que descrevi acima é má-fé ou incompetência intelectual. Entretanto, é notório o desperdício de recursos e talentos. Os motivos são dos mais variados. Todavia, acredito que o que mais pesa entre nós é a herança escravista. Visível numa sociedade ainda muito racista com elites particularistas, mesquinhas, avessas ao espírito público, republicano e com profundo desprezo, e em certa medida repulsa, pelos mais pobres.
Um belo exemplo que em termos de crueldade assemelha-se, e até supera qualquer ficção, foi a expulsão violenta dos moradores do Pinheirinho em nome de uma das empresas de Naji Nahas, acusado e condenado por diversos crimes contra o sistema financeiro. Atribui-se a ele, inclusive, a bancarrota da Bolsa de Valores do estado do Rio de Janeiro. Por ele, o governo, judiciário e a polícia paulistas espancou, derrubou casas com móveis e pertences dentro e pronto. O terreno está lá, vazio.
Gabriel García Márquez disse há alguns anos, numa entrevista, que não era tão gênio assim. E afirmava que aquilo não era falsa modéstia. Dizia que era apenas um observador atento. Segundo ele, a realidade dos desvalidos da América Latina era algo tão fantástico que superava qualquer ficção. A truculência do Pinheirinho e o modo estúpido como o governo do Rio de Janeiro está tratando a Aldeia Maracanã comprovam o que o grande escritor afirmava. E deveria inspirar os jornalistas: “observador atento”.
Professores não aceitam ser avaliados
A nossa imprensa, pertencendo a esta sociedade, não está imune a isso tudo. A propósito, é visível o reflexo dela num país em que a maior parte de sua história foi de escravidão. Basta observarmos que, excetuando-se os cartéis controlados por aristocratas, mesmo em bons programas jornalísticos praticamente não há negros. Mistério? Enigma? No entanto, espera-se da imprensa que vá além de qualquer reflexo, contribuindo assim para as necessárias transformações sociais. E, parece-me claro, como diz Alberto Dines há anos, que isso deveria começar por ela mesma. Critica pessoas, instituições, mas é incapaz de efetuar uma autocrítica. Difícil é saber se isso se deve à empáfia, a interesses escusos ou ambos.
Esse panorama é agravado por aquilo que Roberto Schwarz intitulou num dos textos seus as ideias fora do lugar. Digo isso por perceber certa irresponsabilidade de pessoas que são fundamentais para o aprimoramento da imprensa e da sociedade como um todo: professores, intelectuais e jornalistas. Tenho a impressão que muitas vezes esquecem o caráter eminentemente público de suas profissões e colocam o carro diante dos bois. Em outras palavras, suas convicções particulares, pessoais em detrimento da análise equilibrada e, acima de tudo, de interesse público! Objetar-se-á que ninguém consegue ser absolutamente neutro. Sim, concordo, porém isso não significa perder de vista a sobriedade e comprometimento intelectuais e analíticos.
Explico. Por exemplo, sou profundamente crítico, para não dizer avesso, aos governos tucanos em São Paulo. Mas, no entanto, isso não me autoriza a não reconhecer publicamente iniciativas positivas. Citarei três. O programa Escola da Família, o Bom Prato e a exigência de avaliação dos docentes das escolas públicas paulistas. O fato de que alguns desses programas não lograram êxito, não significa que não sejam interessantes. Há quem chame o Bom Prato de assistencialista. De fato, não é nenhum programa eficaz na erradicação da fome no país. No entanto é, sim, muito interessante. Eu mesmo já almocei no que tem em Santo André. Fiquei impressionado. Comida saudável por R$ 1,00. E o mais interessante: a diversidade. Tem funcionários, sobretudo do comércio, universitários da UFABC, desempregados, moradores de rua, mendigos etc. Por que não estimular mais programas como este ao invés de simplesmente xingá-lo?
A recusa dos professores em realizar exames de competência, se não fosse trágica seria piada pronta. O argumento é dos mais pífios: e aqueles que estão na rede há vinte anos competirem com um recém-formado? Ora, deveria ser o inverso. Na verdade, reconhecem que durante anos ou décadas não se aprimoraram, não leem jornais, que dirá livros, não aceitam ser avaliados. Curioso é que seu exercício profissional consiste exatamente em avaliar.
Futuro melhor
Por diversas vezes, presenciei professores sabotando o Escola da Família. Não estava em questão o bem-estar dos beneficiários. O que valia era que nada que vinha do tucanato paulista prestava. Compreende-se até certo ponto esse posicionamento. Em muitas escolas, o que ocorreu na prática foi a abertura pura e simples das escolas aos finais de semana. Sem o devido acompanhamento pedagógico, técnico etc. Afirmo até certo ponto porque para por aí. Pois aceitar que a ideia de abrir as escolas aos finais de semana para a comunidade, aproximá-la, propiciar atividades lúdicas e pedagógicas para pessoas que vivem em regiões desprovidas de equipamentos de lazer e culturais é excelente. Mas não, descartam de imediato. Claro que por detrás disso estão interesses partidários. Basta observarmos a promíscua relação que diversos sindicatos em geral, e a Apeoesp em particular, têm com o PT. E isso é um dos maiores absurdos que os professores cometem. Contribuem para o empobrecimento da educação, deixando-a as veleidades dos sucessivos governos, impedindo que educação seja definitivamente política de Estado! Sem contar questões simples, cotidianas, que confirmam a irresponsabilidade que mencionei acima. Por exemplo, como um professor ou uma professora que tenham dezenas, às vezes centenas de crianças e adolescentes em sua rede social (principalmente Facebook) posta, curte temas explicitamente relacionados ao álcool?
Não é incomum notar isso. Aparecem com copos de cervejas, visivelmente embriagados em fotos. Curtem propagandas ou mesmo a própria logomarca dos cartéis que controlam a venda e distribuição de bebidas alcoólicas no país e acham bonitinho. Antes de alguém me tomar por moralista, peço que dê uma pequena apreciada nas consequências da venda indiscriminada, principalmente para crianças e adolescentes, de álcool no país. Consultem os diversos estudos que a Unifesp realiza com alcoolismo com adolescentes. Não se trata aqui de pegar no pé de quem bebe. Não, absolutamente! Acontece que os professores têm que saber que enchem a cara no final de semana, mas segunda-feira de manhã sabe que terão que estar prontos para o trabalho. Já estudaram, formaram-se. Ocorre que uma criança ou um adolescente, por diversos fatores psicossociais, não tem este discernimento. E numa época em que os pais, por uma série de motivos, passam cada vez menos tempo com os seus filhos, os professores acabam sendo uma referência fundamental para a formação deles. Isso evidencia a precária distinção que temos do público e do privado.
Boa parte dos intelectuais também não escapa disso. Disse acima que o Brasil é um país que desperdiça oportunidades, além de sua posição geográfica, que o livra de catástrofes naturais como terremotos, ciclones etc. Contamos com um imenso território e uma população disposta e extremamente criativa, já que muitos de nossos conterrâneos simplesmente têm que inventar formas de viver, dado o descaso secular do Estado. Apesar de parte significativa de nossas classes dominantes acreditar que o brasileiro é preguiçoso e não gosta do batente, inúmeras pesquisas indicam que nossa população é uma das que mais trabalham no mundo. Se pegássemos a receita total gasta (e desviada) nos jogos Pan-americanos e investíssemos em estruturas esportivas nas imensas periferias dos grandes centros urbanos, com certeza estaríamos colhendo bons frutos. Um jovem, uma jovem, que tenha uma oportunidade mínima de estudo, de renda, e principalmente a possibilidade de sonhar com um futuro melhor, agarra isso e nenhuma proposta de traficante, por mais sedutora que seja, o faz desistir. Agora, o que aproveitamos do Pan? Agora, se imaginarmos o que está sendo gasto com Copa e Olimpíadas, choraríamos.
Relações precárias
Voltando aos intelectuais. Não sei por que muitos adoram discursos catastróficos, pessimistas e, acima de tudo, incompreensíveis! Para sintetizar bem o que estou afirmando, farei um breve comentário de um artigo que li de André Lara Resende, na edição nº 76 da revista piauí. Ao longo do texto, ele ironiza, desdenha até daqueles que se dizem otimistas. Chega, inclusive, afirmar que, embora não se considere um pessimista, acha o adjetivo um elogio. André Lara Resende faz se valer de um livro, The Rational Optimist, de Matt Ridley, para destilar seu sarcasmo. Sua tese central, após um passeio pela história e alguns autores, é a de que o otimismo é irracional, uma paixão. E, por incrível que pareça, termina o artigo exaltando o otimismo e a esperança, mas ambos fora do âmbito racional. Diz ele: “Talvez não possamos prescindir de algumas ilusões. A esperança é com certeza uma delas. Talvez por isso o otimismo nos faça bem. (…) Há uma insuperável contradição entre a racionalidade e o otimismo.” Parece ter receio de parecer-se com um otimista e assim aproximar-se de um ser humano comum. Não cometeria a leviandade aqui de julgar o autor e sua obra por um único artigo. Contudo, é sintomático o desprezo que faz em relação ao otimismo. Mais uma vez, não condeno a postura de intelectuais que adotam uma postura romântica em relação ao país, futuro, mundo. Penso que a coisa pega quando isso atravessa sua condição histórica, pública.
Paulo Freire cansava de lamentar isso. Afirmava que os intelectuais não deveriam estar nem atrás nem à frente do povo, mas ao lado. Sem contar o divórcio que há entre muitos intelectuais e a realidade que os cerca. Ou sentem que não têm nada a ver com seu povo, ou não estão nem aí, mesmo. Felizmente eu poderia citar uma lista enorme que extrapolariam os limites deste artigo, com nome de diversos pensadores e pensadoras brasileiros que enxergam além do meramente negativo e apontam saídas e soluções. Mas muitos deles parecem não ter espaço numa imprensa majoritariamente sensacionalista (embora um sensacionalismo educado, chique até). O caso da psicanalista Maria Rita Kehl no Estadão é apenas um de inúmeros, infelizmente.
Curioso, mas sempre que estou escrevendo um artigo para o Observatório aparece uma notícia ruim sobre a nossa imprensa. Dia 30/01/2013, uma reportagem de mais uma queda do país em termos de liberdade de expressão. Segundo o blog do jornalista Jamil Chade, do Estadão,nesta mesma data: “Em apenas um ano, o Brasil caiu nove posições. Hoje, Libéria, Uganda, Paraguai e Guiné-Bissau estão melhor posicionados que o país no ranking.” No último dia 3 de fevereiro, o fundador do WikiLeaks, Julian Assange,disse em diversos meios de comunicação que “seis famílias controlam 70% da imprensa no Brasil”. Haverá uma discussão nos grandes meios de comunicação à altura do que o tema merece?
Estamos diante de mais uma tragédia. E mais uma vez, a imprensa está sendo questionada. Não se trata, óbvio, de responsabilizá-la sozinha por isso. Evidente. Mais uma vez, penso que ao invés de muitos jornalistas estarem tentando impor seu juízo de valor sobre isso ou aquilo, poderiam contribuir muito mais. Tem a questão do emprego. E muitos (professores, intelectuais e jornalistas) justificam a omissão em nome da manutenção no trabalho. Só que uma coisa é encarar o mundo real, “dos adultos” e aprender a engolir sapo; outra, bem diferente, é ser conivente com práticas que resultam em dor, desesperança e morte. Quem melhor estudou isso, ou seja, a manutenção do emprego numa época de predomínio absoluto do capital, e a qualquer custo, foi o sociólogo norte-americano Richard Sennett em seu livro apropriadamente intitulado A corrosão do caráter. O mais triste é que esta postura omissa e covarde não garante a tão sonhada estabilidade no emprego, muito pelo contrário. Apenas torna as relações de trabalho ainda mais precárias, instáveis e inseguras!
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[Cristiano Moura Gonzaga é professor e sociólogo, Santo André, SP]