Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A figura do pai

Quatro páginas diárias nos jornais, desde que a renúncia do papa foi anunciada, o que corresponde a umas três semanas – é difícil achar exemplo equivalente de cobertura jornalística. Qual o motivo? Certamente não é o carisma (inexistente) de Bento 16. Muitas reportagens também se esmeram em explicar que a Igreja perde prestígio, perde fiéis, que surgem escândalos dia sim dia não. E, no entanto, vejo pessoas que não são católicas intensamente mobilizadas pelo tema “quem vai ser o próximo papa?”

Não haverá uma razão única para isso. Desprestigiada, a Igreja pode estar; mas ela ainda fornece a mitologia básica da nossa cultura. Experimente pensar num ano do qual fossem retirados o Natal, a Páscoa, a Semana Santa. Estranhíssimo, não? Nesse contexto, o papa desenha uma figura de pai – que é o que o seu nome indica. Em termos de Ocidente, ele ainda é referência. Não por acaso, ele ainda tem uma palavra a dizer nas grandes crises, nas grandes comoções da humanidade. O contraste não poderia ser maior com outras figuras da atualidade – como as que na Itália, onde fica o Vaticano, pretendem chegar ao palácio Quirinale.

A figura do pai – tema imenso na literatura psicanalítica, ou na literatura tout court. Édipo matou o pai. Seria um exemplo do “assassinato ritual” com que você, simbolicamente, tem acesso à plena maturidade. Os nietzscheanos parecem ir além: a partir da “morte de Deus”, postulam um ser humano que seria o criador de si mesmo. Este é o exercício vital de personagens grandiosas como um Goethe.

O licor da sabedoria

O ser comum age e pensa de outra maneira. Exemplo prosaico é o da Venezuela, onde há multidões órfãs do coronel Chávez. Isso pode ter causas econômicas ou sociais; mas certamente é mais do que isso. O mesmo acontece no Brasil. A partir de dados econômicos que são reais – como a expansão da classe média e a diminuição da miséria –, surge um clima onde o ex-presidente Lula se transforma numa espécie de pai da pátria.

Na política, isso é perigoso: conduz fatalmente ao personalismo. É fácil ver, hoje, que Lula tem dificuldade em lidar com a própria imagem. Sente-se mal fora do poder. Desenvolve um tipo de amargura estranha numa pessoa com os seus níveis estratosféricos de popularidade.

No caso do Vaticano, é um pouco diferente. Há exemplo de papas que desenvolveram personalidades imperiais. Mas não é a regra. O prestígio de que eles dispõem, mesmo nas fases mais críticas da Igreja, vem de uma coisa que se chama “autoridade espiritual”. O mundo moderno tem feito um grande esforço para viver sem isso. É até bem típica da nossa época secularizada a figura do ateu tranquilo que é uma pessoa perfeitamente ética e pode ter um comportamento mais cristão que o de muitos cristãos.

Mas a autoridade espiritual existe. Pode vir, por exemplo, de um professor – um mestre – que abriu novos caminhos na sua vida. Na velha Grécia, quem chegou perto de Sócrates sentiu a sua mordida salutar. O doce licor da sabedoria.

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Luiz Paulo Horta é jornalista