Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Chávez e Vaticano, entre meias-verdades

O ser humano, desde os primórdios da civilização, é um apaixonado pela verdade. É por tanto desejo de tê-la que a cultura, na sua luta em dominar os mistérios da natureza, fez surgirem a religião, a filosofia e a ciência. Nos três campos, a verdade foi perseguida tenazmente e muitas revelações vieram à tona. Desde cedo, porém, também foi percebido que nem tudo de descoberto poderia ser revelado, pois, ao lado dos três campos, se somaram a política, a economia e, em território marginal, a arte – sempre temida e, por isso, vigiada.

Do conceito grego de verdade (alethéia) ao conceito romano de veritas, deu-se acentuada mutação semântica e prática. Enquanto os gregos entendiam a verdade como “estado de sinceridade”, aberta, portanto, ao autoengano, os romanos associaram a verdade ao “estado de convencimento”, com base na eficácia argumentativa, ou seja, houve radical redefinição. O que era, para os gregos, patrimônio da subjetividade, para os romanos se tornou apropriação do poder. Assim, o Ocidente tem construído sua história.

Tempos de controle

O conhecimento se expandiu de tal ordem, bem como menor não foi o crescimento demográfico, que a verdade, progressivamente, foi sendo desgarrada da superfície para ser alocada em áreas restritas. Vale recordar uma afirmação de Umberto Eco, extraída da obra Interpretação e história:

O conhecimento secreto é o conhecimento profundo (…). Assim, a verdade passa a identificar-se com o que não é dito ou com o que é dito de forma obscura e deve ser compreendido além ou sob a superfície de um texto.

Sim, Umberto Eco está corretíssimo na sua sentença: a verdade migrou para a instância do “sigilo” que, curiosamente, é uma palavra derivada do mesmo radical de “signo”, além de formar “sigla”. O sigilo tem de ser descoberto e a sigla requer decifração. Consequentemente, a verdade é propriedade da “interpretação”. É nesse novo quadro, intensificado ao longo da modernidade, que chegamos à sociedade da informação e, nela, aos meios de comunicação de massa. A estes coube a missão da triagem e da filtragem, além, é claro, do controle da codificação e de mensagens cifradas.

Como ilustração e visibilidade prática a respeito dessas reflexões mais teóricas e abstratas, recorro a dois recentes acontecimentos: a morte do líder venezuelano e a inesperada renúncia do papa. Trata-se de duas histórias das quais a mídia só pode cobrir com meias-verdades. E o público, apaixonado pela verdade, se consola em receber “versões”. Desde a remoção de Chávez para Cuba, tanto a equipe médica quanto auxiliares diretos do presidente sabiam ser a reta final: o falecimento era questão de tempo. Tempo necessário para acertos políticos internos e criar nos “chavistas” a peregrinação do martírio do “herói”.

Tentando romper o sigilo com a chave da interpretação, posso arriscar em supor que, há meses, Chávez já não tinha vida consciente. Todavia, o poder constituído fez passar a imagem de que Chávez continuava dando as coordenadas governamentais, direto de seu leito hospitalar. Qual é a obviedade que a mídia (ao menos, a “grande imprensa”) ignorou? Conhecendo a personalidade carismática de Chávez, é de se supor que ele, sob domínio da consciência, não perderia a oportunidade de gravar pronunciamentos, mesmo curtos. Ele seria o primeiro a exigir da equipe médica a liberação. Assim, porém, não foi. Prorrogaram a vida vegetativa até o limite máximo. Será essa mais uma versão? Ao leitor, cabe a escolha.

Duas eleições

O outro acontecimento, ainda em curso, remete aos sigilosos interiores que as muralhas do Vaticano protegem. Jamais, saberemos o que, efetivamente, lá está ocorrendo. Segundo consta, no ritual do conclave (“conchave”) os cardeais vivem em absoluto regime de incomunicabilidade, mesmo em tempos de minúsculos celulares, smartphones, internet etc… Isolam-se para “falarem apenas com Deus” e, dele, receberem a orientação correta. Com o devido respeito a 1 bilhão e meio de fiéis, é um roteiro de novela. Vejamos: se cada cardeal votará naquele que ditar sua consciência, como explicar que “deus” dará orientações diferentes?

Já houve eleições decididas somente no terceiro escrutínio. Ora, se a orientação é divina, sempre a indicação dar-se-ia na primeira rodada de votos, não é? Ou, então, tem-se de deduzir que alguns (ou vários) cardeais desobedecem a escolha de “deus”. Estranho, não? Por que “a grande imprensa” e os entrevistadores de plantão não incluem essas indagações em suas matérias? Aguardemos os desfechos das duas eleições (VV): Venezuela e Vaticano, no regime consentido das meias-verdades…

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Ivo Lucchesi é ensaísta, articulista, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da FACHA (RJ)