Com a substituição gradual da figura do telespectador pela crescente multidão de usuários da internet, o conceito da TV digital, nos moldes como foi concebido na década de 1990, já se encontra em vias de extinção: o último representante tecnológico de um paradigma midiático que perdurou por quase um século. Do modelo reafirmado pela chegada das smartTVs, trata-se esta reflexão.
A presença dos rádios nos lares, a partir da segunda década do século passado, representou o surgimento de um novo paradigma de entretenimento, marcando por uma primeira descentralização espacial de suas atividades: as opções presentes até o momento – teatros, parques, circos, cinemas etc. – implicavam o deslocamento das famílias para um espaço físico comum, dividido com outras pessoas, onde apreciavam simultaneamente o divertimento de sua preferência. O rádio traz o entretenimento para o espaço privado das residências, desobrigando as pessoas da necessidade da compartilhamento de espaços públicos para seu usufruto.
Desde a Segunda Guerra Mundial, as TVs chegam aos lares, não como uma ruptura no paradigma estabelecido pelo rádio – no recorte proposto da ocupação de um espaço físico comum para o usufruto do entretenimento –, mas como uma evolução deste conceito. Este modelo permaneceu priorizado aos espaços íntimos e domésticos, compartilhado por seus moradores e convidados.
Com o desenvolvimento de novos formatos de conteúdo, que dependiam de aparelhos específicos e de suportes próprios para sua armazenagem, reprodução e distribuição, observou-se a proliferação de equipamentos eletrônicos nas residências. Este fato, somado à queda progressiva dos preços, permitiu às famílias possuírem aparelhos em seus cômodos individuais, proporcionando uma segunda descentralização, mas ainda restrita ao espaço privado dos lares.
Dispositivo inédito
No final da década de 1970, o aperfeiçoamento dos circuitos integrados viabilizou o surgimento de um dispositivo inédito nas residências: o computador pessoal. Este precursor voraz da era atual absorveu, ao longo de três décadas, todos os formatos existentes de conteúdos, acrescentando outros tantos. Paralelamente, o avanço na tecnologia das baterias e na microeletrônica tornou possível a existência de diversos aparelhos portáteis, dentre eles o telefone celular.
Do amálgama da computação com a telefonia móvel surge o equipamento que concretiza a mudança deste paradigma de entretenimento perpetrado por décadas. Este feito deve ser creditado ao smartphone: unindo portabilidade e multiplicidade de formatos para a exibição de conteúdos, o smartphone possibilitou a terceira grande descentralização da atividade de entretenimento, não mais restrita aos espaços públicos compartilhados, ou ao espaço privado dos lares.
O sucesso do smarphone como suporte para o novo modelo de distribuição de conteúdos impulsionou a criação de dois novos aparelhos, redundantes em suas funções: os tablets, e as smartTVs. Estes três dispositivos possibilitam o acesso a múltiplos formatos e a diversos mediadores de interação interpessoal, diferenciando-se principalmente por suas dimensões.
Supremacia virtual
O novo paradigma midiático da tríplice relação espectador-espaço-entretenimento caracteriza-se pela desobrigação a espaços físicos determinados e a equipamentos eletrônicos específicos, resultante da redundância funcional e portabilidade dos novos dispositivos; e pela vinculação aos novos mediadores, constituídos por “espaços” virtuais obrigatórios e seus aplicativos específicos.
Por este motivo, grandes corporações lutam pela supremacia virtual em duas frentes principais, a saber: o monopólio da mediação do acesso aos conteúdos, e o monopólio da mediação das relações interpessoais. A batalha pelo monopólio da mediação do acesso aos conteúdos remonta ao início da world wide web. Seu primeiro campo constituiu-se da disputa entre navegadores, o segundo envolve os portais de acesso, e o terceiro os buscadores. Todos persistem até nossos dias.
A mais recente batalha pelo monopólio da mediação das relações interpessoais tem como arenas principais a oferta de serviços de transmissão, armazenagem e gerenciamento de e-mails, fotos e vídeos, entre outros; perpetuando-se nas redes sociais. Os fronts confundem-se, possuindo limites difusos, pois as relações virtuais normalmente incluem conteúdos em diversos formatos. Comparecem na disputa os novos dispositivos físicos, através de alianças seladas entre corporações virtuais e as indústrias de eletrônicos, pelos aplicativos específicos a aqueles incorporados.
No epicentro desta competição globalizada, o “simples” ato de compartilhar, perpetrado pelos usuários dos serviços virtuais, torna-se o motor principal de todo o processo.
Arauto ideológico
No discurso publicitário de exaltação às novas tecnologias, arauto ideológico deste futuro-agora por nós usufruído, o ato de compartilhar comparece hipertrofiado e esvaziado das funções pragmáticas e ritualísticas de proporcionar coesão aos grupos humanos. Compartilhar constituiu-se atividade fundadora da humanidade: compartilhamos alimento, proteção, espaço físico, ideias, linguagem etc. Não sobreviveríamos à competição da natureza, e sequer existiríamos, se não compartilhássemos todo o tempo. Tal gesto reforça laços familiares e comunitários, preparando os grupos humanos para as adversidades onipresentes na luta pela sobrevivência.
O discursos das campanhas publicitárias sobre as “virtudes” dos novos equipamentos, e de seu papel facilitador da atividade de “compartilhar” com amigos e com a família, acabam por encobrir os propósitos prioritários potencializados por esta nova classe de produtos: a mediação do acesso aos conteúdos virtuais, e a mediação das relações interpessoais.
Muitos poderão objetar ao recorte oferecido, afirmando que há um ganho maior neste novo modelo de compartilhamento, pois a “cultura participativa” e a “inteligência coletiva” proporcionarão toda a coesão e cumplicidade necessária ao sucesso da humanidade. E poderão até estar certos. Entretanto, meu desejo aqui resume-se a refletir sobre o fato de que compartilhar fotos e vídeos, ou compartilhar proteção e alimentos, podem ostentar a mesma denominação, mas não representam idêntico gesto. Denuncio enfim mais este sequestro, perpetrado pelas estruturas midiáticas, de um conceito carregado de profunda significação, esvaziado e subjugado aos interesses do capital.
Pois sabedor de que ao aclamado “espaço” virtual corresponde um espaço físico nos computadores de grandes corporações, às quais confiamos nossas existências virtuais, fotos, vídeos, documentos etc., recebo com cautela o anúncio desta nova “maravilha” tecnológica representada pelas smartTVs. O que acarretará deste novo “espaço para compartilhar com toda a família”? Somente o futuro poderá revelar: não este utópico futuro-agora publicitário, mas o futuro concreto que todos deveremos compartilhar.
******
André Silveira Sampaio é professo e escritor