Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

‘Falta de memória’ irritou interrogadores

A sequência de frases iniciadas com “não sei”, “não me lembro” e “não me consta” exasperou os interrogadores do então cardeal de Buenos Aires, Jorge Bergoglio, que fez um depoimento à Justiça em 2010 sobre o sequestro de dois padres jesuítas durante a ditadura argentina (1976-1983). A íntegra das palavras do hoje papa Francisco está disponível na página na internet da entidade “Avós da Praça de Maio”.

O então cardeal depôs na condição de testemunha sobre o desaparecimento por seis meses em 1976 dos padres Orlando Yorio e Francisco Jalics, que estavam em processo de desligamento da Ordem Jesuíta. Bergoglio era à época o provincial (chefe) jesuíta na Argentina.

Bergoglio não revelou quem eram as pessoas que, ainda antes da prisão de Yorio e Jalics, o procuravam para se queixar das ligações com a esquerda dos padres que atuavam em favelas. Também disse não se lembrar se tratou dessas denúncias com os padres, no momento em que decidiu dissolver a comunidade em que atuavam.

O hoje papa disse que não procurou saber quem foi a pessoa que telefonou a ele no dia seguinte ao sequestro para dizer que Yorio e Jalics haviam sido sequestrados. Insistentemente perguntado, Bergoglio foi evasivo ao explicar como soube que os dois padres estavam sob custódia da Marinha, e não do Exército ou da Aeronáutica. “Era Vox Populi”, limitou-se a dizer. Revelou apenas o nome de um informante, o padre Federico Storni, já falecido. “Já falecido? Que curioso!”, exclamou um dos interrogadores, sem esconder a ironia.

O então cardeal relatou com detalhes as gestões que fez para tentar a libertação de Yorio e Jalics, como as audiências com o comandante da Marinha, Emilio Massera. Na última, a conversa entre o almirante e o jesuíta teria terminado de maneira áspera, com Bergoglio se retirando do gabinete sem se despedir.

“Coisas passadas”

Para ter acesso ao comandante da Junta Militar, o presidente Jorge Videla, o cardeal Bergoglio relatou que tomou o lugar do capelão que oficiava a missa na residência de Olivos. Após a cerimônia, teria abordado Videla e exposto o caso.

Bergoglio disse que semanas depois recebeu um telefonema do próprio Yorio, relatando que haviam sido libertados nos arredores da capital. O cardeal detalhou então como informou ao então cardeal de Buenos Aires e ao superior geral dos jesuítas sobre o fato e da gestão que fez para que o núncio apostólico acompanhasse os dois padres na chancelaria, para conseguir retirar os dois do país em segurança.

O cardeal voltou ao tom hesitante quando perguntado sobre a sua participação no episódio em que a chancelaria argentina recusou-se a renovar o passaporte de Jalics. O padre Jalics já estava na Alemanha e havia pedido o apoio de Bergoglio para poder renovar o passaporte no exterior, já que não se sentia seguro para voltar a Buenos Aires. O cardeal disse não se lembrar com quem tratou sobre o caso na chancelaria ou se fez algum documento por escrito.

No domingo, o principal impulsionador das denúncias contra Bergoglio, o jornalista Horacio Verbitsky, divulgou em matéria no jornal governista Página 12 um fac-simile de um documento assinado pelo Diretor de Culto da chancelaria no governo Videla, Anselmo Orcoyen. No texto, Orcoyen menciona que Bergoglio teria assinado um documento solicitando que o governo não concedesse novo passaporte a Jalics.

Alheios à polêmica sobre o grau de cooperação de Bergoglio com o regime militar, os católicos lotaram a catedral de Buenos Aires ontem, na primeira missa dominical celebrada com um argentino como Sumo Pontífice. Telões foram espalhados pela Praça de Maio, e a cerimônia era interrompida por aplausos e gritos de “Viva” toda a vez que o papa era mencionado.

As leituras bíblicas do quinto domingo da Quaresma, por coincidência, pareciam remeter à polêmica. Na primeira leitura, do livro do profeta Isaías, havia um apelo: “Não fiqueis a lembrar coisas passadas, não vos preocupeis com acontecimentos antigos”. Na leitura do Evangelho, narrou-se a passagem em que Jesus Cristo salva uma adúltera do apedrejamento desafiando: “quem nunca pecou, que atire a primeira pedra”.

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César Felício, do Valor Econômico em Buenos Aires