Em nenhum estágio da civilização, registra-se impacto maior ou igual ao que foi promovido no curso da modernidade. Do século 15 ao 20 – vale dizer, da Era Gutemberg (1468) à Era Digital –, houve mutações, em todos os aspectos da vida, patrocinados pela parceria entre a “velocidade” e a “aceleração”. Algo que o teórico Paul Virilio já caracterizou como “cultura dromológica”.
É mais que sabido quanto a prensa, invenção de Gutenberg, libertou a informação da clausura propiciada pelas muralhas que, durante a Idade Média, serviram de proteção e resguardo. A consequência primeira da prensa foi a proliferação de bibliotecas que, em pouco tempo, surgiram na Europa.
O choque das mutações
É fascinante acompanhar as conquistas oriundas da inteligência, bem como a capacidade mutante que as invenções têm sobre a vida cotidiana. Gutenberg, com a prensa; Thomas Edson, com a lâmpada; Joseph Nicéphore Niépce, com a fotografia;Graham Bell, com o telefone; a invenção do gramofone, pelo alemão Emil Berliner; os irmãos Lumière, com o cinema; Marconi, com o rádio; John Baird, com a televisão… Trata-se de uma sequência das mais revolucionárias, sobretudo no que envolve a comunicação, sem ignorar as benéficas e maléficas resultantes na subjetividade dos receptores.
Quando, ingenuamente, pensávamos o domínio da plenitude, eis que uma nova era se avizinhava: um longo tempo de reinado do sistema analógico seria, rapidamente, substituído pelo sistema digital, graças à criação do modelo RSS por Aaron Swartz, implodindo com o já familiar paradigma de televisão, toca-discos, videocassete, telefonia fixa… Daí, advieram o CD, o DVD etc. Ao sistema analógico de base linear, sucedeu o sistema digital não-linear. Com isso, o sentido de narrativa contínua foi rompido.
Claro, não se pode ignorar a “máquina de Turing”, nos anos 1940, prenunciando o que, adiante, viria sob a forma de computadores pessoais e internet, com oferta de sites em profusão, para todos os gostos, em âmbito mundial. A vida, virtualizada em rede, portanto, logo seria transformada em realidade vivencial a distância (RVD).
Para compreensão das mutações
Hoje, com tantas ofertas fomentadas pela tecnologia, é um novo mundo. Ao longo da modernidade, reinou a parceria entre o humano e a técnica, o que muito fez expandir tanto a criação no campo da arte quanto a invenção, no campo da ciência. No tempo da hipermodernidade, porém (Era Digital), a primazia é da ciência e tecnologia e, nesse novo paradigma, a criação cedeu o posto à invenção. A troca supõe uma indagação de ordem semântica: qual a diferença entre “criação” e “invenção”? Na primeira, está o radical formador do verbo “criar” do qual se origina “criatura”; na segunda, está o radical que forma “ventar” e o derivado “inventar” – portanto, criação está para a arte, assim como a invenção está para a ciência.
A arte é produto da “criatura”; a ciência é resultado de um inventor que vai “para dentro do vento”. Este é o significado etimológico de “inventar”: vento é transformação e natureza. O vento traz o que não havia e leva o que existia. Assim, enquanto a arte se ocupa da existência, a exemplo da filosofia (ambas no âmbito da cultura), a ciência lida com o desvendamento dos fenômenos presentes na natureza da qual, também, faz parte a vida em geral, porém, como integrante da natureza, razão por que há a expressão “natureza humana”.
A sofisticação e o rebaixamento
A digressão em torno dos significados etimológicos teve o propósito de trazer à tona a questão-chave: a fantástica evolução da ciência e da tecnologia, na contramão da acentuada regressão (ou involução) da arte. O vigor da criação não tem sabido acompanhar o ritmo acelerado do rigor da invenção. Na era da robótica, da cibernética e da nanotecnologia, surgem, progressivamente, “máquinas inteligentes”. O mesmo, porém, não se constata na arte. Há décadas, tem-se a impressão de que a arte chegou ao limite do esgotamento. O que a nova geração faz em literatura, cinema, teatro, música, artes plásticas é, no mínimo, sofrível para não classificar de deplorável. A sofisticação e o aperfeiçoamento, presentes na ciência e na tecnologia, correspondem, na arte, ao rebaixamento e à estagnação. O mundo objetivo e prático parece haver emudecido o mundo subjetivo e dilemático. Perdeu-se o sentido de existência em favor da afirmação do que Guy Debord, em 1987, chamou de “presente contínuo”.
A nova geração, municiada de todas as “ferramentas comunicacionais” oferecidas pela era digital, devota-lhes quase tempo integral. Num primeiro estágio, com o advento da “vida em rede”, foi estilhaçada a fronteira entre o “público” e o “privado”. Num segundo momento, evidenciam-se os efeitos provocados pelo anterior: operou-se uma inversão. Basta que observemos o comportamento da nova geração: no espaço que seria da ordem do “privado”, tudo se torna “público”; no espaço, antes público, agora se torna privado.
Para a ideia ficar clara, ofereço os exemplos seguintes: 1) as pessoas se expõem e exibem-se nas redes sociais, sem o menor pudor ou constrangimento, como se estivessem compartilhando uma cena íntima, ou seja, tornando público o que seria privado; 2) essas mesmas pessoas, quando se encontram em espaços públicos (pátio de universidade, restaurante, praça etc.), isolam-se plugadas com fios nos ouvidos, como se estivessem sozinhas ou recolhidas na própria casa, ou seja, ignoram o ato público. O mesmo ocorre quando, em ambientes coletivos, pessoas, aos celulares, falam alto, choram, gritam, sem atentarem a outros que as rodeiam.
Às situações descritas, é perfeita a classificação de “esquizofrênicos sociais”, proposta por Ciro Marcondes Filho, no belo livro A produção social da loucura (Editora Paulus, 2003). É da referida obra que extraio as citações seguintes nas quais, ainda na apresentação do livro, o autor sentencia, de modo preciso e criticamente conciso:
À loucura, ao ritmo frenético da produção, corresponde um novo homem, absolutamente dissociado, racional, isolado do ambiente social, frio, com uma tenacidade cega e preocupante e que busca permanentemente recompor o contato com o social, mas por meios ilusórios ou literalmente delirantes (máquinas, vídeos, jogos eletrônicos, consumo, linguagem dissociada, etc.).
Páginas adiante, o teórico acentua um processo sistemicamente orquestrado pelo novo mundo das “máquinas”, atingindo e transformando a mente de jovens, sobretudo quanto ao modo de pensar, sentir e agir:
O sistema de produção da loucura, reforçando esses estados patológicos latentes nas pessoas, torna-as aptas para entrar na máquina e operá-la, participando do teatro do mundo. O preço do ingresso é a saúde mental.
Trata-se de um novo perfil humano e social. Para esse, compromisso e comprometimento são atitudes fugazes, tragadas pela tentação do efêmero. Nada tem continuidade. É uma vida de golfadas, fluxos, irrealidades. Por isso, o autor usa a expressão “teatro do mundo”. É uma vida de “encenações” nas quais o espaço público não passa de um “palco” e o coletivo se torna “plateia”. Por fim, Ciro Marcondes Filho arremata:
(…), pode-se supor que hoje, tendo a sociedade global assumido a função de educar em lugar dos pais, passa então ela a gerar esquizofrênicos sociais. O lócus de incubação da patologia explode as paredes do lar e instala-se na sociedade maior, produzindo nosso novo homem da era pós-industrial.
O problema adquire contornos dramáticos, pois a escola e as novas mídias montaram um complô contra o processo de amadurecimento, gerando jovens com mentes infantilizadas e rejeitando o olhar crítico. O que, em outra época, era considerado padrão de anormalidade, no atual contexto, se afirma como paradigma de normalidade. Assim, jovens, entre 20 e 30 anos, se portam e vestem-se como adolescentes. É a proliferação da síndrome de Peter Pan…
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Ivo Lucchesi é ensaísta, articulista, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da FACHA (RJ)