Há um “jogo” competitivo entre os poderes da República. A divergência, que se tornou política, entre Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal (STF), abriu “às claras” que existe uma crise de identidade entre os poderes no país. Dá para desconfiar que o STF, em vez de Justiça, quer fazer política. O Congresso, em vez de política, quer fazer Justiça. Durante toda a semana, os grandes jornais, só para citar como exemplo, O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo, trouxeram à tona a falta de consenso e contrapeso, a disputa muito mais política, entre Congresso e STF.
O jornal Folha de S.Paulo trouxe a matéria “STF suspende projeto que beneficia Dilma na eleição”. E, o jornal O Estado de S. Paulo cravou o seguinte título: “Supremo barra projeto que impede criação de novos partidos”. As duas reportagens mostravam que o ministro Gilmar Mendes havia suspendido a tramitação no Congresso do projeto de lei que inibia a criação de partidos. Já aprovada na Câmara e em análise no Senado, a proposta retira de legendas novatas o amplo acesso ao fundo partidário e ao tempo de TV, segundo reportagem do jornal Folha de S.Paulo. Mais: para o ministro Gilmar Mendes, que atendeu à ação do PSB, de Eduardo Campos, o projeto foi analisado com “extrema velocidade”, em prejuízo da democracia. Segundo a Folha, patrocinada pelo Planalto e aliados a lei esvazia iniciativas como a de Marina Silva, que quer criar sigla para disputar a presidência.
Essa decisão, segundo a Folha, veio no dia em que a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara (CCJ) aprovou uma proposta para submeter atos do STF ao crivo do Congresso.
“O projeto não impede a criação de partido algum”
Apesar de a grande imprensa mostrar a polêmica, muito bem explicou o jornalista Janio de Freitas, em sua coluna na própria Folha de S.Paulo deste domingo. Vale reproduzir trechos do artigo:
“Não é verdade, como está propalado, que o Congresso, e nem mesmo uma qualquer de suas comissões, haja aprovado projeto que submete decisões do Supremo ao Legislativo. A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara nem sequer discutiu o teor do projeto que propõe a apreciação de determinadas decisões do STF pelo Congresso. A CCJ apenas examinou, como é de sua função, a chamada admissibilidade do projeto, ou seja, se é admissível que seja discutido em comissões e eventualmente levado a plenário. A CCJ considerou que sim. E nenhum outro passo o projeto deu.
Daí a dizer dos parlamentares que ‘eles rasgaram a Constituição’, como fez o ministro do STF Gilmar Mendes, vai uma distância só equiparável à sua afirmação de que o Brasil estava sob ‘Estado policial’, quando, no governo Lula, o mesmo ministro denunciou a existência de gravação do seu telefone, jamais exibida ou comprovada pelo próprio ou pela investigação policial.
De autoria do deputado do PT piauiense Nazareno Fonteles, o projeto, de fato polêmico, não propõe que as decisões do STF sejam submetidas ao Congresso, como está propalado. Isso só aconteceria, é o que propõe, se uma emenda constitucional aprovada no Congresso fosse declarada inconstitucional no STF. Se ao menos 60% dos parlamentares rejeitassem a opinião do STF, a discordância seria submetida à consulta popular. A deliberação do STF prevaleceria, mesmo sem consulta, caso o Congresso não a apreciasse em 90 dias.
Um complemento do projeto propõe que as ‘súmulas vinculantes’ – decisões a serem repetidas por todos os juízes, sejam quais forem os fundamentos que tenham ocasionalmente para sentenciar de outro modo – só poderiam ser impostas com votos de nove dos onze ministros do STF (hoje basta a maioria simples). Em seguida a súmula, que equivale a lei embora não o seja, iria à apreciação do Congresso, para ajustar, ou não, sua natureza.
O projeto propalado como obstáculo à criação de novos partidos, aprovado na Câmara, não é obstáculo. Não impede a criação de partido algum. Propõe, isso sim, que a divisão do dinheiro do Fundo Partidário siga a proporção das bancadas constituídas pela vontade do eleitorado, e não pelas mudanças posteriores de parlamentares, dos partidos que os elegeram para os de novas e raramente legítimas conveniências. Assim também para a divisão do horário eleitoral pago com dinheiro público” (Jânio de Freitas, Folha de S.Paulo, edição de domingo, dia 28 de abril, página A10).
Todos lutam por uma coisa chamada “poder”
O Senado reagiu dizendo que a decisão do STF “invadiu” o Congresso, mas o ministro Gilmar Mendes – que recebeu grande espaço esta semana por parte dos veículos de comunicação – respondeu. “É o Executivo que invade o Congresso”. Ou seja, estabeleceu-se, nesse momento, uma ‘lavação’ de roupas sujas envolvendo, desta vez, até o Executivo. Nota-se que a imprensa fez questão de, mais uma vez, colocar como um dos pontos centrais da discussão o nome da presidente Dilma Rousseff (PT) garantindo que a chefe maior da nação será a principal beneficiada, por exemplo, com a decisão de liminar a criação de partidos. Em meio a todo esse caos gerado pela crise entre os poderes, a Reforma Política, que poderia garantir ou rejeitar o financiamento de campanha, não é votado. Pior: nem sequer abordado na mídia.
No século 18, em O Espírito das Leis, Montesquieu parece ter deixado a lógica da divisão de poderes como forma de “peso e contrapeso” e para convivência harmônica entre eles. Ele analisou as relações que as leis têm com a natureza e os princípios de cada governo, desenvolvendo a teoria de governo. Buscava, com isso, distribuir a autoridade de modo a evitar o arbítrio e a violência. Tais ideias se encaminham para a melhor definição da separação dos poderes, ainda hoje um dos pilares do exercício do poder democrático. Montesquieu dividiu cuidadosamente a separação dos poderes em Executivo, Judiciário e Legislativo.
Apesar de ser uma ideia lógica, na vida real a política parece mais complexa. Para que o Espírito das Leis funcione é preciso que a ação entre os poderes seja em conjunto e haja independência e harmonia. Montesquieu parecia dizer que a lei só existe quando o poder está dividido em várias mãos. É um dos princípios da democracia.
E, se o mundo está repleto de leis – entre elas a lei da natureza – e, a liberdade do indivíduo é fazer tudo aquilo que a lei não proíbe está na hora de se estabelecer uma discussão consensual entre os poderes. Cada um cuide do seu quintal garantindo o pleno funcionamento da instituição Estado-político. Mas, infelizmente sabemos que não vai ser fácil. É ilusão pensar assim. Todos lutam por uma coisa chamada “poder”.
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Edgar Leite é jornalista, mestre em Ciências Sociais Políticas pela PUC e editor-chefe do jornal Diário de Suzano