Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Um olhar crítico

No futuro, quando os historiadores forem examinar o período que hoje vivemos no Brasil, irão se deparar com uma questão das mais contraditórias: a relação do governo Dilma Rousseff com a mídia.

A administração Lula, diretamente afetada pela condição de primeiro governo de centro-esquerda do país desde a deposição de João Goulart, em 1964, não teve disposição ou não foi capaz de implementar uma Lei de Meios que democratizasse as comunicações e, assim, coibisse a transformação de parte da mídia em usina de escândalos, factoides e desqualificações. A inação talvez se explique, parcialmente – embora não se justifique –, pela própria virulência de tal transformação, que manteve durante boa parte do mandato o governo nas cordas, bombardeado por uma sucessão de denúncias, reais ou fabricadas, num processo de permanente chantagem que atinge seu ápice – mas de modo algum seu fim – durante o “mensalão”.

Porém se, por conveniência ou medo, o ex-presidente Lula manteve intacta a arcaica estrutura comunicacional do país, limitando-se a redirecionar parte das verbas publicitárias federais de modo a também irrigar rádios e imprensa regionais – e, em bases ínfimas, órgãos da internet –, não se furtou a legar à sua sucessora, através do trabalho incansável de Franklin Martins à frente da Secom, um projeto fundamentado de regulamentação das comunicações e um plano viável para expansão da banda larga a curto e médio prazos.

Candidata encarregada de dar prosseguimento e aprofundar o legado de Lula, a expectativa, há exatos três anos, era que Dilma, se vitoriosa, tão logo assumisse, encaminhasse tais projetos e priorizasse a questão comunicacional através da promulgação de uma Lei dos Meios que regulamentasse, em bases republicanas, a atividade midiática, democratizando de fato a área comunicacional no país.

Requisitos da democracia

Trata-se de uma bandeira histórica da esquerda brasileira e de condição sine quae non para o exercício pleno da cidadania, tal como fundamentado por uma linhagem de pensadores vigorosos – de Perseu Abramo a Venício A. de Lima –, os quais demonstraram de forma comprovada, com dados e exemplos comparativos, o jugo oligárquico, o caráter antidemocrata e o atraso estrutural que caracterizam a mídia corporativa no Brasil. Que tais características tenham, na última década, potencializado o ódio de classes e transformado, não raramente, a mídia em um raivoso porta-voz da oposição acrescenta ainda mais urgência à questão das comunicações no país.

Como antídoto a esta realidade incompatível com uma democracia em consolidação, têm sido recomendados, como elementos essenciais internacionalmente consagrados, a proibição da propriedade cruzada dos meios de comunicação – ou seja, que uma mesma empresa de comunicação tenha imprensa, rádio e TV em uma mesma região –, a diversificação de opções e a democratização do acesso a meios e conteúdos. Ainda dentro de tal espírito, os novos tempos digitais tornam imprescindível a inclusão da expansão da banda larga a preços acessíveis e condições técnicas condizentes, de modo a incorporar parte do ainda enorme contingente de excluídos digitais.

Flerte com a mídia

Malgrado as altas expectativas suscitadas por uma administração que recebeu o país em muito melhores condições do que FHC o legara a Lula, o governo Dilma, porém, logo deu mostras de que não pretendia contemplar tal agenda. Um primeiro movimento de recuo tem lugar já ao final da campanha eleitoral, com a seguinte declaração, daí em diante recorrente, em versões variadas, mas conservando a mesma ideia-base: “Prefiro o barulho da imprensa livre do que o silêncio das ditaduras”. A meu ver, o jornalista Paulo Nogueira foi quem melhor dissecou os sentidos inerentes a tal acacianismo.

Espécie de Carta ao Povo Brasileiro para a questão comunicacional, tais palavras foram a senha, para a plutocracia midiática, de que o governo não apoiaria uma Lei dos Meios e de que não haveria retaliação contra os abusos cometidos durante o período eleitoral – os quais incluem, entre inúmeros outros exemplos, uma ficha policial falsa da candidata petista na capa de edição dominical da Folha de S. Paulo e os esforços do Jornal Nacional e de seus experts de encomenda para transformar em chumbo uma bolinha de papel atirada à fronte do oposicionista José Serra.

Daí por diante a história é conhecida: primeiro a nova presidente flertou com a mídia corporativa, posando para capa da Veja, cozinhando ao lado de Ana Maria Braga, chegando a voar de Brasília a São Paulo para confraternizar com o alto tucanato num rega-bofe promovido pela Folha de S. Paulo, jornal de propriedade de uma empresa privada de comunicação.

Usina de escândalos

Deu em nada, ou seja, a mídia continuou a praticar o mesmo jogo de derruba-presidente da era Lula, com capas estapafúrdias, um exercício cotidiano da negatividade e do ódio incompatível com o bom jornalismo, denúncias semanais que permaneciam nas manchetes até que os acusados fossem demitidos pelo governo – e, como o comprovam o caso do ex-ministro Orlando Silva e da ex-secretária Erenice Guerra, quando, meses mais tarde, a Justiça os decretasse inocentes, sequer uma matéria viria a ser publicada, quanto mais um pedido de desculpa ou um destaque minimamente proporcional à denúncia.

Clara fica não apenas a leviandade das acusações – e o mau jornalismo que isso denota –, mas a constatação de que o interesse da mídia nunca foi a moralização da coisa pública, mas tão-somente a escandalização com objetivos eleitoreiros ou golpistas.

Pelo contrário, com a coincidência cronometrada – inaceitável em um país verdadeiramente democrático – do julgamento do mensalão com as eleições de 2012, os grupos de comunicação, em clave de espetáculo, deram vazão a um verdadeiro linchamento midiático, no melhor estilo esfola-e-mata, incluindo uma narratividade dramática composta de bandidos, mocinhos e de um herói solitário e vingativo, como convém à fabulação do totalitarismo.

Frutos do “mensalão”

O resultado não poderia ser outro: um acirramento de ânimos de parte a parte, uns celebrando a única vitória do conservadorismo na última década (ainda que obtida “no tapetão” e não nas urnas); outros – e aqui se incluem muitos dos que até então vinham defendendo, por estrategismo ou por temor, a parcimônia do governo para com a mídia – vociferando contra o que concebem como uma aliança golpista entre mídia e Justiça, destinada a, num futuro próximo, melar os resultados das urnas se este continuar a desapontá-las.

O nosso arguto historiador do futuro, beneficiando-se da perspectiva distanciada que o tempo dá e em a obrigação de entrar no mérito da questão judicial, há de perceber que a insistência com que a conduta da mídia no “mensalão” foi invocada como um dos principais pretextos para regulá-la acabou, na verdade, por abrir flancos que beneficiaram os que à regularização se opõem. Não que a conduta da mídia durante o processo não tenha sido, em larga medida, questionável. Ela o foi, bem como, em ainda maior grau, o foram várias das decisões dos juízes, notadamente – mas não exclusivamente – a inversão do ônus da prova, o uso por demais inovador da teoria do domínio dos fatos e as condenações sem provas mas “permitidas pela literatura jurídica”.

Ocorre, porém, que facilitou tremendamente a tarefa da mídia de fazer-se de vítima e de confundir propositadamente o clamor republicano por um jornalismo que respeite ao menos uma deontologia básica e efetivamente sirva ao público com os queixumes de uma parcela do eleitorado com sede de vingança pela derrota jurídica e política sofrida em um julgamento que, para a maioria leiga da população, transcorreu em normalidade. E, neste ponto convém frisar, tal impressão errônea se deu não só pela atuação tendenciosa da mídia, mas pelo misto de incompetência comunicacional, omissão e recusa deliberada das forças políticas ora no poder de denunciarem os interesses em jogo e as práticas para tal utilizadas no julgamento.

Agendas próprias

Nosso arguto historiador certamente também se dará conta de que o uso da pregnante sigla PIG (Partido da Imprensa Golpista) pode até ter sido uma maneira escrachada e efetiva de tipificar a mídia corporativa, em um cenário de enfrentamento aberto. Que o recurso à sigla não deixa de traduzir um desejo latente que a conduta de grande parte da mídia no período permitiu entrever. Mas que tal uso traz também em seu bojo um maniqueísmo que o exame detalhado dos fatos desmente, pois quando a agenda conservadora da mídia e a agenda dos governos federais petistas coincide, o alegado golpismo frequentemente dá lugar ao silêncio cúmplice ou à ratificação ponderada.

Não faltarão exemplos para que nosso historiador ilustre tal hipóteses. Três deles:

1) A mudez quase total da mídia durante a repressão do governo Dilma à greve dos professores federais, em 2012, que se alastrou por quatro meses e incluiu recusa ferrenha à negociação, articulação de um sindicato pelego para simular acordo e protestantes reprimidos a cassetetes na frente do MEC, em Brasília. Ante esse feito que nem FHC nem a ditadura militar ousaram, a mídia não emitiu um pio de protesto. Se a intenção fosse mesmo dar um golpe no governo seria um prato cheio para desconstruir negativamente a imagem de Dilma;

2) O entusiasmo dos colunistas econômicos quando o governo Dilma retomou as antes tão criticadas privatizações, então apelidadas de concessões e que, de início alegadamente limitada a três aeroportos, logo se expandiu para ferrovias, rodovias e mais um punhado de aeroportos. Se quisesse mesmo golpear Dilma, que fácil seria para a mídia colocar-lhe a pecha de mentirosa e incoerente, contrapondo imagens da candidata criticando ferozmente a privatização e da presidente a saudar-lhe;

3) O silêncio cúmplice da mídia para com as medidas de desoneração da folha de pagamentos, sem exigir dos setores beneficiados nenhuma contrapartida – como suspensão do desemprego ou manutenção de preços – e, como apontou o insuspeito Luis Nassif, sem que o Ministério da Fazenda aponte como cobrirá o rombo na Previdência que tais medidas certamente causarão. Ora, não há golpismo que resista à desoneração da folha, clamor de décadas do patronato brasileiro, curiosamente atendido por um governo que se diz de centro-esquerda.

Benefícios eleitorais

No futuro, nosso historiador talvez venha a sugerir que se a relação da mídia com o governo Dilma não foi tão marcada por um maniqueísmo golpista, como uma parcela pequena mas barulhenta da arena política quer fazer crer (pois a maioria do povo brasileiro estava à margem desse debate e não tinha ideia sequer do que signifique PIG), talvez seja necessário levar em conta que, malgrado a notória má vontade da mídia para com o petismo, a própria presidente se beneficiava, de um modo não evidente mas efetivo, desta relação.

Tal benefício talvez constituísse a principal explicação para os altos índices de aprovação de que a mandatária vinha gozando nos primeiros dois anos e meio de seu mandato, em que se verifica uma incorporação de setores conservadores da classe média – como, de forma notável, os que professam o neopentecostalismo –, comumente refratários ao petismo.

Ajuda a explicar também porque um ministro como Paulo Bernardo – que antes confraternizava alegremente nas redes sociais, prometendo para logo a democratização da banda larga, e hoje quer doar R$3bi para as teles privatizadas para que estas cumpram o que é obrigação contratual – goza neste momento não apenas de blindagem na imprensa, mas do acesso a vultosos apoios financeiros eleitorais, dos quais os candidatos governistas certamente também irão se beneficiar.

Ante esse cenário, a atual presidente não teria motivações eleitorais para rever os critérios de distribuição de verbas publicitárias federais, relativizando o cômputo da audiência como fator determinante e implementando uma estratégia que visasse, em alguma medida, a promover a inovação e a diversificação do campo comunicacional no Brasil. Suas motivações teriam necessariamente de ser de outra ordem, cívica, republicana – o que contrariaria o pragmatismo eleitoral petista adotado na última década.

Questões em aberto

Entretanto, é apenas o nosso querido historiador, no futuro, quem saberá o desenlace desse e dos demais dilemas subjacentes à relação de Dilma Rousseff com a mídia corporativa – e quem poderá responder questões ora prementes, tais como:

Em que medida – se alguma – a manutenção de uma atitude passiva por parte da presidente traz efetivos benefícios eleitorais?

O que garante que esses segmentos conservadores que ora apoiam Dilma não a deixarão na mão, sob forte estímulo midiático, tão logo disponham de um candidato minimamente viável advindo de seu próprio espectro político?

Qual o limite de paciência de parcelas do eleitorado de esquerda que, tendo votado em Dilma, encontram-se exasperadas com o conservadorismo de sua gestão?

Faz mesmo sentido, para a centro-esquerda, vencer uma eleição em que as alianças e os compromissos assumidos impõem, na prática, uma agenda conservadora?

Até que ponto vale a pena sacrificar tudo – inclusive o direito republicano dos cidadãos brasileiros de viverem em uma sociedade com o setor comunicacional democratizado – em troca da realização de um projeto de poder?

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Maurício Caleiro é jornalista e doutorando em Comunicação pela UFF