As recentes mortes de Hugo Chávez e Margaret Thatcher são bastante ilustrativas da maneira pela qual os meios de comunicação de massa elegem os seus “representantes”. Assim, se o presidente venezuelano merecera maus agouros desde o dia em que se tomou conhecimento acerca do câncer que o acometera, a ex-primeira-ministra britânica, a despeito da alcunha de “Dama de Ferro”, recebeu sinceros pêsames e muitas coroas de flores. Obviamente, não se acredita, tampouco se deseja, que os veículos de informação sejam desprovidos de posições e tendências. Afirmações nesse sentido são ingênuas, pois é sabido que, originária e essencialmente, os mass media são sociedades empresariais cujo principal objetivo é a maximização dos lucros, sendo a informação, pois, secundária. Os mitos da imparcialidade e da objetividade jazem a sete palmos da terra.
O problema, de fato, consiste no caráter ideológico dos veículos de informação. Em um primeiro momento, ideologia, grosso modo entendida enquanto conjunto de ideias. Aquilo que é posto em pauta, o “faro jornalístico”, o tratamento dispensando a certos temas – incluindo tanto a estrutura textual quanto a imagem – estão certamente norteados pelas “ideias” que percorrem as redações e emissoras. Ainda que estas sejam compostas por um grupo relativamente heterogêneo de pessoas, não se pode perder de vista que, assim como um maestro ou um magistrado, é antes o patrão quem imprime a sua subjetividade à informação a ser veiculada. Levando-se em consideração, não obstante, que atrás de grandes jornais, emissoras de rádio e TV e portais da internet há sempre oligopólios e oligarquias.
A “revolucionária liberal”
Mas a análise da ideologia nos mass media estaria incompleta se se olvidasse o entendimento dado a essa categoria pelo pensamento marxista. Sob essa perspectiva, na verdade, não se diz ideologia nos meios de comunicação, mas os meios de comunicação enquanto ideologia. Ou seja, não se trata aqui apenas de um conjunto de ideias, porém de como se leva a cabo a circulação de princípios e valores de determinados atores sociais. Trata-se, portanto, de um instrumento de inversão da realidade, no qual se oculta o real, a fim de que a aparência permaneça na superfície. Aqueles que manejam tal instrumento, a saber, as classes detentoras dos meios de produção – e informação –, têm interesse em produzir e reproduzir aquelas ideias.
Para esse expediente, a dicotomia judaico-cristã entre o bem e o mal (Deus e o Diabo) adequa-se perfeitamente à lógica binária da sociedade da informação, do espetáculo, do consumo – ou, mais acertadamente, do capital. Isso porque o “você decide” não engendra uma disputa democrática – escolher o final da estória não é o mesmo que ser o sujeito da história –, mas, ao contrário, fomenta o pensamento único, tão caro ao neoliberalismo e aos seus arautos, a exemplo da própria Thatcher. Esta, a propósito, segundo a mídia hegemônica brasileira, encarnou a figura onírica de uma mulher determinada, energética, lúcida, que soubera conduzir a Inglaterra às benesses do livre mercado, através, sobretudo, das privatizações. Já Hugo Chávez, frequentemente visto como um bonachão, durante todos os seus mandatos foi tachado de insano, populista, ditador, além de ser uma ameaça à “mão invisível” que deveria reger a economia. Por outro lado, o fato de ter reduzido drasticamente as desigualdades socioeconômicas da Venezuela é mero detalhe.
Economicamente, “Maggie”, tal qual seu comparsa Ronald Reagan, tivera como meta o combate à inflação, que ocorrera mediante corte de gastos sociais (leia-se: investimentos) e redução dos impostos sobre os rendimentos altos. Contrária à militância sindical, a então primeira-ministra travou uma batalha ferrenha com os sindicatos, aprovando, inclusive, leis capazes de desmantelá-los. Como herança, deixou uma exacerbada desregulamentação do setor financeiro, levada às últimas consequências com as recentes crises econômicas vivenciadas pela Europa, que também implementou, em alguma medida, o modelo thatcheriano. A depender da opinião de Oscar Pillagalo, publicada no sítio da Folha de S.Paulo, “Margaret Thatcher foi um dos poucos políticos contemporâneos a quem se pode aplicar, sem exagero, o rótulo de revolucionário” (“Thatcher, o legado da revolucionária liberal”, 8/04/2013).
“Um império de mídia estatal”
Sem dúvidas. Em 1982, enviara as tropas britânicas para combaterem a Argentina, na disputa pelas Ilhas das Malvinas (Falklands, para os ingleses), arquipélago localizado no extremo sul do Oceano Atlântico. Os 74 dias do conflito foram suficientes para que se alcançasse o número de 900 soldados mortos, sendo 649 do lado argentino. Mas não cessa aí seu “legado” para a América Latina: além do apoio que dera ao ditador Augusto Pinochet, influenciara as políticas neoliberais adotadas por alguns presidentes brasileiros, sobretudo Fernando I e Fernando II. Seja na Inglaterra, no Chile ou no Brasil, o enxugamento do Estado atingiu inúmeros setores – elétrico, petrolífero, de aço, de água e de habitação pública – e, consequentemente, gerou altíssimas taxas de desemprego.
Ressalta-se, para fins de anedota, que o referido general chileno recebera uma bandeja de prata de Thatcher – e, indiretamente, dos mass media –, acompanhada de uma mensagem na qual chamava de “colonialismo judicial” à apuração das violações dos direitos humanos perpetradas durante seu regime. Diferentemente, é claro, das acusações empreendidas contra Chávez, das quais Steve Rendall, na revista Le Monde Diplomatique Brasil (“Para as mídias, um homem a eliminar”, 02/04/2013), compilou algumas pérolas que tentavam definir o líder venezuelano, tais como: “No fim das contas, era realmente um autocrata e um déspota” (NPR [rádio pública]); “petroditador clássico” e “demagogo carismático” (Wall Street Journal); “morte de um demagogo” (Times).
Em terras brasileiras, a Folha de S.Paulo também fez a lição de casa, ao traçar sua trajetória à frente do Miraflores: “Em abril de 2002, as elites o derrubaram brevemente em um golpe de Estado apoiado pelo governo de George W. Bush (2001-2009). Chávez sobreviveu e se radicalizou, declarando-se socialista e estatizando grandes porções da economia”. Além disso, “Chávez criou um império de mídia estatal que promoveu um culto de personalidade e reforçou o controle do Executivo sobre as Forças Armadas, o Judiciário e o Legislativo” (“Hugo Chávez morre, e venezuelanos vão às ruas em Caracas”, 05/03/2013). Na mesma direção são as observações de Miriam Leitão, economista de O Globo: “(…) foi um governo que estatizou empresas e fez intervenções. Além disso, considerou que um dos ‘inimigos’ era a imprensa, atacando veículos e jornalistas” (“Legado de Chávez: redução da pobreza, aumento da violência”, 5/03/2013).
As versões dos donos
O interessante é que essas refinadas análises escamoteiam alguns fatos bastante relevantes, a começar pela participação da Radio Caracas Televisión (RCTV), em 2002, na tentativa de depor Hugo Chávez, eleito democraticamente pelo povo venezuelano. Isso pode ser constatado no documentário “A Revolução Não Será Televisionada“ (2002), dos irlandeses Kim Bartley e Donnacha O’Briain. Do mesmo modo, a revista CartaCapital, em 6 de junho de 2007, publicou uma série de reportagens acerca das intervenções da mídia na política. Em relação à recusa do governo da Venezuela em renovar a concessão da RCTV, Antonio Luiz M. C. Costa escrevera: “As críticas devidas ao personalismo e ao autoritarismo não deveriam servir para ocultar o problema muito mais amplo da hegemoneização e homogeneização da informação, na maior parte do planeta, pela grande mídia transnacional ou pelos oligopólios nacionais” (“Nem estado, nem mercado”).
Percebe-se que o jogo não se reduz à dicotomia “mau governo vs. bom governo”. As peças do tabuleiro, por sua vez, não são dispostas ao acaso. Os meios de comunicação de massa trabalham habilmente com os signos, a fim de alcançar não-somente lucros vultosos, mas, também, interferir politicamente na sociedade. Aliás, vale a indagação: é possível a separação da economia, da política e da informação? Considerando-se o tratamento dado às mortes de Chávez e Thatcher, a resposta é negativa. Apesar das respectivas construções, nota-se que, às vezes, a própria História encarrega-se de depurar os acontecimentos. No caso de ambos os governantes, não será diferente: caberá aos sujeitos históricos constatar a plausibilidade das versões apresentadas pelos donos da informação.
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Gabriel Tardelli é jornalista, Niterói, RJ