Elas faziam parte da geração que já nasce com fotos no Instagram, cresce com um perfil no Facebook, se alimenta de posts múltiplos no Twitter e vive de olho grudado num smartphone. Eram americanas, país dos mais plugados na vida digital, moravam em Cleveland, Ohio, 28ª maior região metropolitana dos Estados Unidos, e tinham 14, 16 e 20 anos quando foram raptadas da vida.
Hoje, Gina DeJesus, Amanda Berry e Michelle Knight são jovens mulheres de 23, 27 e 32 anos de idade. Como foi fartamente noticiado ao longo da semana, os dez anos de horror, sevícias e bestialidade que viveram em mãos do sequestrador Ariel Castro tiveram desfecho milagroso e cinematográfico na segunda-feira passada. Não cabe, aqui, revolver a natureza por demais sombria e desumanizadora do caso. Tampouco interessa reprisar cada novo fragmento de informação que a mídia consegue capturar dos depoimentos prestados pelas vítimas à polícia.
É sobre o choque do presente que vai se falar aqui. Gina, Amanda e Michelle não tiveram qualquer experiência ou existência digital durante essa eternidade de dez anos. A década em que viveram trancafiadas num calabouço, sem contato humano além do predador, foi justamente o período em que para a geração das vítimas estar vivo é ter presença digital constante, em tempo real.
Inexoravelmente, seus perfis virtuais agora serão construídos. Estarão abarrotados de amigos e de desconhecidos que já se consideram seus amigos. O próprio maníaco que as sequestrou, ao abrir um perfil no Facebook dois meses atrás, logo conquistou 41 “amigos”. Nenhum dos seus posts jamais indicou qualquer perturbação mental. “Esta manhã acordei com o assobio de um canário. A primavera deve chegar em breve”, dizia um dos primeiros textos, escrito na mesma casa em que mantinha as três mulheres aprisionadas e seviciadas há dez anos. Seu último post, “Milagres acontecem. Deus é bom”, foi redigido três dias antes do estouro do cárcere privado.
Hits no YouTube
Amanda Berry, no agoniado telefonema de alforria e pedido de socorro à polícia, demonstrou ter uma noção de tempo de cativeiro e clareza de propósito extraordinárias. Seu depoimento à polícia também parece ter sido preciso o suficiente para que as autoridades pudessem enquadrar Ariel Castro como único suspeito. Com os testemunhos prestados por Gina DeJesus e Michelle Knight ainda no hospital, foi possível completar o quadro necessário para o seu indiciamento.
Foi em meio a um extático ritual de boas-vindas às jovens resgatadas, com as casas de Amanda e Gina quase levitando em meio a balões, flores, fitas e faixas, que o noticiário e a opinião pública começaram a dar sinais de insaciabilidade, de curiosidade. Com a esfera privada cada vez mais esquecida do comportamento humano, ansiava-se pela aparição relâmpago de talvez uma das jovens resgatadas. Ou quem sabe um breve relato do reencontro, feito por algum parente próximo.
Afinal, a espetaculosa libertação repleta de lances dramáticos já fora descrita pela mídia de todos os ângulos possíveis, dezenas de vezes; e as entrevistas com parentes, amigos, ex-colegas das vítimas ou da família do acusado começavam a se repetir; os debates com especialistas em Síndrome de Estocolmo, autoridades policiais, juristas e sobreviventes de sequestros anteriores, também.
Até mesmo o irresistível lavador de pratos Charles Ramsey, celebridade instantânea na internet por sua colorida narrativa de como teria libertado Amanda Berry do cativeiro, encerrara a semana algo diminuído. Ele dera pelo menos vinte entrevistas, cada uma mais autêntica e folclórica que a anterior, fora saudado como legítimo herói nacional por não hesitar em socorrer um estranho, e estava prestes a receber uma recompensa pelo feito quando alguém descobriu o tímido imigrante hispânico Angel Cordero como sendo o verdadeiro autor do arrombamento da porta que salvou Amanda.
Mas como Cordero não fala uma palavra de inglês, a história continuará registrando a oratória de Ramsey, transformada em música com 400 mil hits no YouTube: “Quando ouvi os gritos eu estava aqui comendo meu McDonald's… fui ajudá-la a abrir a porta… Tá na cara que tinha algo de errado quando uma garota branquinha corre para os braços de um negão, tá na cara…”
Roubado e destruído
Nesta primeira semana após o encerramento do caso, repórteres americanos com boas fontes junto à polícia de Cleveland conseguiram alguns detalhes importantes dos depoimentos prestados pelas jovens sobre seus anos de cárcere e brutalidade. Fica a dúvida se o conteúdo desses depoimentos não deveria ser totalmente blindado pela polícia. Afinal, não se trata de um material crucial para a liberdade de imprensa nem indispensável para o direito à informação. Só Amanda Berry, Gina DeJesus e Michelle Knight deveriam ter o direito de decidir se querem ver divulgada – como e quando – a narrativa de uma aberração humana pela qual passaram, mas que não as define. Talvez elas queiram, antes, tentar se reencontrar com o que eram. Ou, ao contrário, revelar tudo para conseguir se reconectar ao mundo.
Depois de tudo o que lhes foi roubado e destruído, este direito ninguém deveria querer ou poder atropelar.
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Dorrit Harazim é jornalista