Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Eduardo Coutinho e a verdade da filmagem

Eduardo Coutinho foi o documentarista brasileiro que mais se abriu à alteridade. Desde Cabra marcado para morrer (1984), seus filmes se alimentam das histórias de “pessoas comuns”. Sua obra, conforme afirmação do próprio cineasta, não se ocupou da filmagem da verdade, mas da verdade da filmagem. E, assim, podemos dizer que ele reinventou o cinema documental.

O documentário Eduardo Coutinho, 7 de outubro (2013), recém-lançado em dvd e dirigido por Carlos Nader, reúne mais de 70 minutos de uma entrevista de quatro horas concedida por Coutinho, com a presença de sua equipe no set de filmagem. Ou seja, o jogo se inverte: Coutinho é o entrevistado. E o resultado é uma verdadeira aula.

O mestre comenta o seu ofício e discute sequências dos seus filmes, como Santo forte, Babilônia 2000, Edifício Master, Os peões, O fim e o princípio, Jogo de cena e As canções. E conta que seguia algumas regras, tais como o “lugar único” para a filmagem, a “câmera imóvel” e não entrevistar pessoas do seu convívio pessoal. Essa “pena imposta a si mesmo”, isto é, estar preso ao “presente da filmagem”, é o que poderia levar à libertação. E, para Coutinho, a libertação era a descoberta de personagens reais.

Não se tratava, portanto, de um documentarista que ia atrás de depoimentos que se prestassem a uma tese previamente formulada. Em vez disso, Coutinho se lançava à incerteza, de forma que os depoentes pudessem tomar contato com a sua própria história, legitimada pela presença do diretor e pelo olho da câmera. “Quem fala”, afirma Coutinho, “é o corpo”. Assim, o que “pode criar vida” é a “realidade do diálogo na justa distância”, quer dizer, posicionar-se bem próximo do entrevistado, uma “co-presença”, segundo o cineasta.

Jogos de cenas

Nessa medida, Jogo de cena (2007), filme que questiona a cisão entre ficção e não ficção, é uma de suas obras mais significativas. No palco de um teatro, sentado de frente para a plateia (vazia), Coutinho conduz uma série de entrevistas com mulheres. Em algumas delas, no meio do depoimento, entra em cena outra pessoa, vivendo a mesma história. Às vezes uma mesma história é contada em outro momento do filme. Em muitas sequências, o espectador não distingue quem de fato viveu o drama e quem está interpretando: atrizes desconhecidas podem estar interpretando, atrizes conhecidas podem contar eventos de suas vidas pessoais, muitas são as possibilidades – os pressupostos são postos em sobressalto. Nesse sentido, Jogo de cena explicita que nós somos muitos e que, portanto, a realidade não é uma só.

Daí não fazer sentido propor uma filmagem da verdade, mas a verdade da filmagem: este hiato invisível – e infinito – entre entrevistador e entrevistado, de onde emergem as personagens reais. Com efeito, a verdade é inapreensível e suas formulações, inesgotáveis. Nos filmes de Coutinho, é da cadeia interminável de dilemas que saltam as histórias. Não é aleatório que na entrevista concedida a Carlos Nader o documentarista se defina um apaixonado por tudo o que é inacabado, impuro, imperfeito. Sua busca era justamente fazer da diferença, triunfo.

Últimas conversas

O derradeiro jogo de cena, no entanto, ainda estava por vir. Em circunstâncias trágicas que se assemelham a algumas das histórias registradas em seus filmes, o cineasta faleceria em fevereiro do ano passado, assassinado pelo filho, que sofre de esquizofrenia. Na época, Coutinho trabalhava em um novo projeto e deixou trinta e duas horas de filmagens com jovens estudantes da rede pública do Rio de Janeiro. Jordana Berg (sua montadora) e o também documentarista João Moreira Salles finalizaram o material: Últimas conversas abriu o festival É Tudo Verdade, em São Paulo, e estreia no circuito nacional em maio.

Não deixa de ser curioso – e bonito – que em seu último filme Eduardo Coutinho tenha se aproximado de personagens adolescentes e voltado o olhar para o futuro.

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Renato Tardivo é escritor e psicanalista