Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Efeitos inesperados do maniqueísmo na política

Penso que todo e qualquer fato tem inúmeros lados para serem vistos e analisados, apesar da visão maniqueísta falar sempre de dois. A moeda é, nesse sentido, um ótimo exemplo maniqueísta, já que quem a ela se refere despreza sua espessura e também suas irregularidades. Faz-se com a moeda o mesmo que a física clássica faz com os fenômenos naturais, ou seja, despreza tudo o que ‘atrapalha’ um movimento ideal: atrito, curvas, irregularidades, resistência do ar etc.

Essa visão simplista e maniqueísta é a mesma ainda predominante na cultura humana desde as idades do obscurantismo religioso, cujos restolhos nos acompanham até hoje. Dizer que tal fato tem seguramente esta ou aquela verdade que o explica é adotar uma visão, no mínimo, ingênua. Acontece que os ‘defensores da ética’ na política, sob o comando indelével e sorrateiro de boa parcela da mídia, especialmente de revistas semanais de grande impacto, se empunham de lanças sempre com a mesma envergadura, a mesma tendenciosidade.

Para eles, essa envergadura é justificada e até necessária, já que o ‘alvo podre’ está exatamente lá para onde se dirigem as lanças. Justificando-se a inclinação tendenciosa, ela se autolineariza por definição de uma ética igualmente confortável e conivente com seu estilo de vida e objetivos, definindo-se como isenta e proba per se. Em inglês, dir-se-ia biased de um método com esse direcionamento distorcido, um tipo de erro sistemático embutido, quase sempre não percebido pelos usuários na busca de uma pretensa ética, cuja falta ou pecado está sempre localizado no ‘outro’. Uma ética manca, portanto, fruto de uma interpretação conveniente da ética aristotélica baseada no certo/errado.

Será que as missões das Cruzadas Romanas durante séculos do passado não estariam no fulcro disseminador desse arquétipo coletivo? Obviamente, ao se embrenhar nessa empreitada distorcida, corre-se o risco de se fortalecer recursivamente um sistema maniqueísta na política, já que o ‘outro’ lado se sente no direito de mostrar a ‘sua verdade’, parecendo aos que estão ‘de fora’, os eleitores no caso, que um dos lados está certo, enquanto o outro está errado.

Repetição deliberada

É assim que um debate vira um acirrado jogo de futebol. Sábio, nessa cruzada insana, seria aquele que consegue descobrir qual é o ‘lado certo’. Numa visão mais ampla, entretanto, chamada na educação de hoje de transdisciplinar, há muito mais que os dois lados em qualquer fato, uma vez que somos convidados a nos espelhar na natureza, a qual é irregular e não-linear em suas múltiplas dimensões.

Para trazer a tona um pedaço dessa tendenciosidade na política atual, é só fazer uma ‘perguntinha idiota’ aos que se alinham a essa abordagem biased da política, sem questionamentos mais profundos: já que nenhum dos dois partidos que disputam a eleição atual é santo e nenhum deles tem anjos em suas fileiras (ou alguém discorda disso?), já pensou se a grande mídia decidisse publicar escândalos alternados em cada semana, ou seja, numa semana elas mostrariam um dos podres do PT e na outra semana elas mostrariam um dos podres do PSDB? Como estaria a corrida presidencial hoje? Teríamos segundo turno? Já que o objetivo principal é revelar escândalos, por que não se dá a mesma ênfase deste ou daquele lado? Não seria mais equânime, mais nobre? Dá para refletir nisso isento de paixões partidárias?

Ou nós somos seres alienígenas de um mundo chamado ‘Ingenuosland’ que, chegando à Terra, descemos no Brasil, vamos a São Paulo num domingo à tarde, entramos no Morumbi lotado durante um jogo de Corinthians e Palmeiras, e acreditamos que se escolhermos um dos lados da arquibancada para perguntarmos sobre qual é o melhor time em campo, a resposta seria isenta de tendências? Será que repetição deliberada dos emissários alienígenas não chegaria a um nível de saturação, a tal ponto que os cidadãos ETs em seu mundo, ao ler e ouvir sempre sobre o mesmo lado da moeda, não começariam a desconfiar de uma leitura tendenciosa das informações que chegam e dar crédito exatamente ao contrário do que é insistentemente pregado? Há algo aqui que ressoe o fenômeno que observamos na reta final do segundo turno?

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Físico, professor-titular do Departamento de Física e Biofísica da Unesp, Campus de Botucatu, SP