Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Eles não usam celular


CENA 1 — ou um flagrante do nosso desconforto crescente em relação às máquinas, que parecem querer tomar o poder político e o poder econômico das nossas mãos de carne e osso e da nossa cabeça de massa encefálica feita de células vivas


O que antes alguns chamavam, num tom quase triunfal, ou triunfante, pouco importa, de ‘marcha inexorável do progresso’ ganhou o andamento de uma sucessão de golfadas de loucura em aceleração desgovernada. A locomotiva animada que nos conduziria ao futuro, nas metáforas a vapor do início do século 20, se transmutou em sacolejante lata velha espacial. Estamos à mercê de turbulências cósmicas, meteoritos nos metralhando a estibordo, numa viagem sem previsão de término, sem destino convencionado. Sofremos de enjôo, vertigem, câncer e gripe suína. O planeta está às vésperas de um superaquecimento. É preciso dar um jeito nisso. Apertem os cintos. Fechem as chaminés.


Na nossa nave sucateada, o progresso virou uma idéia esquisita, envelhecida, muito mal disfarçada em sua nova fantasia, o ‘crescimento econômico’. A própria metáfora que alavancava – outro termo perdido para sempre – a idéia de progresso padece agora de fadiga de material. A aceleração dos tempos a triturou. Essa noção, a de que estamos embarcados numa locomotiva rumo ao futuro, ficou antiqüíssima de repente. Usá-la seria como vestir um chapéu coco e sair pela rua para pegar o bonde. Falar que estamos embarcados na locomotiva do futuro é mais fora de época do que anunciar que hoje à noite vamos dormir numa caverna. Sim, dormir numa caverna tem um sabor de aventura bastante atual, em sintonia com essa tal de contemporaneidade. Um dos sintomas da nossa violenta recusa ao poder das máquinas parece ser justamente esse, o culto religioso de uma natureza idealizada, sem química, sem concreto armado, sem transgênicos, sem aço inoxidável, sem hormônios, sem avião a jato, sem televisão, sem césio 137, sem bomba atômica, sem fumaça de óleo diesel, sem baterias de cádmio, sem refrigerador, sem antibiótico, sem celular.


Celular? Eu disse sem celular? Espere um pouco.


CENA 2 — ou o modo como o fetiche da tecnologia permite que ela sobreviva e se reproduza mesmo no âmago dos que se declaram inimigos do capital


‘Não!’, alguém se levanta, ‘o celular é progressista!’. Outro se soma ao primeiro: ‘O celular é inclusivo!’. Em passeata, os novos hippies interconectados, cujo mundo ideal é um Woodstock em Sierra Maestra, com o tempero dos gadgets de Sillicon Valley e fantasias liberais-humanitárias a guisa de coletivismo espontâneo, repetem em coro: ‘O celular é democratizante!’. Como nos nossos tempos de fundamentalismos digitais as palavras ‘progressista’, ‘inclusivo’ e ‘democratizante’ funcionam como salvo-conduto do discurso, eles liberam o celular.


Na horta orgânica do relativamente admirável mundo novo ideal, o celular é permitido, assim como a internet é ‘do bem’ e o software livre é a arquitetura da nova revolução social por avatares. É engraçado, mas, não fosse pelos celulares, pela internet e pelo software livre movido a fetiches libertários, essa nova cultura das tais redes interconectadas se reduziria a uma fazenda amish com maconha, cerveja e alguma tolerância sexual. Só alguma, por favor.


PRIMEIRO BALANÇO entre a CENA 1 e a  CENA 2 (por ora, não haverá segundo balanço)


Nas crenças que vão se amoldando nessa primeira década no século 21, já se distingue bem: ganha corpo a percepção social de que a aceleração tecnológica deve conhecer algum tipo de freio, ou ela terminará por dissolver até mesmo as referências imaginárias por meio das quais nós nos vemos como humanos. Da mutação genética programada a fiéis que se ajoelham diante de monitores de TV, a civilização se vê assaltada por forças bárbaras e, atenção, forças que são maquinais e, portanto, não-humanas.


A civilização que se vai quer resistir. Quer se refugiar na natureza, no que entende ser o que resta de natureza, e também na natureza humana (isso existe?). Ao mesmo tempo, existe a forte percepção de que, sem a tecnologia, nem mesmo o humano parece conseguir fluir, transitar, comunicar-se. Não há perspectiva de vida social fora dela. Nem mesmo de vida humana. Vai daí que, bem, nesse caso, o celular pode.


UM COMENTÁRIO SOBRE A IMPRENSA (pois, afinal, estamos aqui num site especializado e não se pode ignorar completamente o tema)


Há que se abrir, aqui, uma conexão – um link – para a cultura de imprensa, que vem se esboroando no seio do senso comum. Nas utopias correntes que endeusam as redes sociais, imagina-se que o jornalista independente seja peça sobressalente, dispensável, quando não um mito burguês (atravancando a saga da esquerda) ou um chato extremista (atrapalhando as negociatas dos burgueses patrimonialistas). Temos aí um impasse bastante grave, que tardará a ser compreendido e resolvido.


A informação e o debate público, imagina-se, poderiam muito bem prescindir das redações autônomas. Sem redações, elas prosperariam mais à vontade na ilha da fantasia tecnológica, no shangri-lá cibernético que por vezes se insinua como ordem superior à democracia formal. Vem o twitter – que também pode – e o jornalismo vira uma espécie de ‘correio elegante’ de quermesse junina de antigamente, mas agora pelo celular. Que é inclusivo. Que é progressista. Que é democratizante.


Constatação sumária: a instituição da imprensa não foi assimilada pelas utopias dos shangri-lás cibernéticos. Em certas franjas, essas utopias se deixaram fisgar pelas pregações autoritárias dos governantes ‘libertadores’, que emancipariam a humanidade do jugo do capital. Sem querer, idolatram tiranos como quem bate palmas para a liberdade. Em outras franjas, caíram na lorota de que o capitalismo revitalizado pela fabricação de valores virtuais – cujas relações de produção não mais dependem de relações formais de trabalho – é a encarnação definitiva do socialismo sobre a face da terra. Aí, como não conseguem ver por onde passa o fio das novas formas de exploração, acreditam que o capital tem os seus dias contados. Umas e outras franjas perderam de vista a necessidade estrutural do ponto de vista independente (a instituição da imprensa) para a sobrevivência de qualquer via democrática. Estamos mal.


AGORA UM PARÁGRAFO DE ENCERRAMENTO (apenas para justificar o título deste artigo)


Tenho três amigos que não usam celular. Que não têm celular. Olho para eles como quem olha para formas em extinção. Vejo no seu fenótipo uma resistência quase poética. Tenho apreço pela atitude que adotaram, com sua teimosia comovente. Por meio deles, mantenho viva a memória do que já fomos. Esses meus amigos são reservas ecológicas ilhadas na cultura que sucumbiu ao chip e ao bit.


De vez em quando, porém, sinto emergir no meu olhar uma pontada de impaciência (ela, também, tecnológica). Aí, quando impaciente, vejo meus amigos como sintoma, não como solução. A sua resistência poética é também patética. O que o celular mudou não foi o tempo individual de cada um – instância que a tecnologia simplesmente despreza e, quando necessário, atropela. Não ter celular para dizer que o nosso tempo individual não foi alterado pela tecnologia é uma forma de auto-engano. Esse tempo ‘individual’ não existe. O celular, a propósito, não mudou coisa alguma. Ele veio, isto sim, no bojo de mudanças mais drásticas, aquelas que alteraram os tempos sociais. Usar ou não usar celular, ainda que moderadamente, não depende do ‘meu estilo de vida individual’, mas do ritmo e da estrutura da intersubjetividade em que existimos. Não ter celular, em questão de dias, será como não ter luz elétrica, telefone fixo, ou e-mail (embora existam também aqueles – alguns exercendo cargos públicos – que não têm e-mail e se recusam a abandonar a máquina de escrever).


Ter ou não ter luz elétrica, telefone, correio, antena, computador não é uma questão de escolha individual. Lamento muito, mas não é. Compreender a dimensão social dessas relações de tempo e de comunicação significa compreender, também, que quem não tem celular não está poupando a si mesmo de um trabalho ou de um aborrecimento, mas está impondo trabalhos e aborrecimentos extras àqueles com quem se relaciona. Eles não usam celular, mas são usados – a um custo mais alto, apenas isso – pela economia interconectada pelos celulares. Não que isso represente, no que escrevo, um argumento a favor do celular. Representa apenas a constatação daquilo que citei no início deste texto: a marcha inexorável do progresso. Agora, porém, com uma distinção: antes, o progresso aparecia como fruto do projeto democrático; agora, ele irrompe como a vitória (política) da tecnologia sobre o que nos resta de humano, daí o nosso mal-estar. Daí que eu tenho celular – mas twitter não, nem pensar.


Fora tudo isso, o que há no ar são fios desencapados, chicoteando em alta tensão.

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Jornalista, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP