Os norte-americanos criaram os neo-cons, neo-conservadores, turma da pesada cujo símbolo é o dedo no gatilho – primeiro atiram e depois perguntam quem vem lá.
No Brasil, terra dos pudores e manhas, é difícil achar quem queira assumir-se integralmente como neo-lib, neoliberal. Preferem o uniforme ‘libertário’, sem se incomodar em parecer os antigos anarquistas que combatiam qualquer ação reguladora do Estado.
Estes libero-anarquistas detestam normas, limites e ordenações, prostrados aos pés do Deus do Mercado e de sua cônjuge, a Deusa Livre Iniciativa. Usam o crachá de democratas, mas desprezam solenemente o bem-comum, o interesse público, a comunidade e a sociedade.
Esse é o mix ideológico do estranhíssimo lobby que reúne os adversários da classificação indicativa da programação de TV e da regulamentação da publicidade de cervejas na mídia eletrônica. O denominador comum é o rancor contra qualquer tipo de regulamentação. Em nome de uma liberdade imprecisa e indefinida, advogam a lei da selva.
Compromissos esquecidos
A classificação indicativa da programação da TV, assim como o controle sobre a publicidade de bebidas alcoólicas, está prevista de forma explícita e insofismável em diversas passagens dos artigos 220 e 221 da Constituição:
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‘Compete à lei federal regular as diversões e espetáculos públicos, informar sobre a sua natureza e as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada (art. 220, parágrafo 3º, inciso I).**
‘Compete à lei federal estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no artigo 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.’ (art. 220, parágrafo 3º, inciso II).**
‘A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais nos termos do inciso II do parágrafo anterior e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso.’ (art. 220, parágrafo 4º).O citado artigo 221 prevê no seu inciso IV que a produção e programação das emissoras de rádio e TV devem respeitar ‘os valores éticos e sociais da pessoa e da família’.
O legislador-constituinte não foi casuísta, foi preciso. Excepcionalmente claro e objetivo. Não deixou qualquer contradição entre a letra e o espírito da lei como muitas vezes acontece. Preocupado com o uso indevido das concessões de rádio e TV – e com as confusões costumeiras entre o público e privado – amarrou muito bem a regulamentação sobre a programação e sobre a difusão de publicidade nociva à saúde. O interesse comercial não pode impor-se ao interesse social, sobretudo numa esfera claramente pública (o espectro da radiodifusão).
Os juristas contratados pelas cervejeiras, empresas de radiodifusão e de propaganda desta vez precisarão suar as suas camisas de seda para encontrar aquelas famosas brechas ou imprecisões que convertem nossas leis num emaranhado de lapsos. Estranha muito que o Conar, geralmente apontado como paradigma de auto-regulamentação, no caso dos comerciais de cerveja esqueça os seus compromissos com a saúde pública, seduzido pelas fabulosas verbas de publicidade das cervejeiras.
Celebridade instantânea
O governo Lula não inventou coisa alguma em matéria de classificação indicativa. Deu seqüência ao trabalho de José Gregori ao tempo em que ainda era Secretário de Direitos Humanos do governo FHC, ao igualar a baixaria televisiva a um atentado aos direitos humanos.
Agora os neo-libs nativos, a pretexto de fidelidade libertária, passam ao largo dos compromissos com a preservação dos valores humanos e morais indispensáveis à democracia.
Os ministérios da Justiça e da Saúde e a presidência da República estão certos ao exigir uma regulamentação nessas duas frentes. O único erro foi a proposta de vedar às celebridades a participação em comerciais de cerveja. Aqui houve intenção de discriminar: a celebridade não tem culpa de ser célebre. Na sociedade do espetáculo em que vivemos a fabricação da fama é instantânea – ou quase. Em apenas 15 minutos qualquer pagodeiro desconhecido pode converter-se num celebrado Zeca Pagodinho.
Obra coletiva
Estão errados os neolibertários, liberalóides e falsos democratas ao impedir que a sociedade brasileira produza os antídotos necessários à defesa da saúde e à formação das crianças e adolescentes.
Nos EUA, pátria do liberalismo e da resistência às regulamentações, a classificação etária para a exibição de filmes em cinemas ou teatros tem mais de meio século. Algumas decisões são eventualmente contestadas, mas ninguém ousaria opor-se à idéia de eliminar os limites. As redes abertas de TV também adotam princípios rígidos para compatibilizar sua grade com horários e faixas etárias.
O processo civilizador, como obra coletiva, impõe normas. Pretender uma civilização do tipo vale-tudo leva fatalmente a um intransponível beco sem saída.