Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Em defesa dos evangélicos

Em face do tratamento usualmente recebido pelos evangélicos na mídia, vou fazer o impensável: defendê-los. Não faço isso por achar que críticas são desmerecidas. No mais das vezes, são justas. O problema é que os grupos religiosos mais afluentes nunca são criticados com a mesma vontade.

Semanas atrás, a desastrosa mistura de religião com futebol deu mais uma vez o ar de sua graça com a visita do Santos Futebol Clube ao que seria uma instituição de caridade. Tudo ia bem até os jogadores chegarem ao local e verem as letras miúdas em tamanho bem grande: tratava-se do ‘Lar Espírita Mensageiros da Luz’. Metade do time travou. Muitos jogadores nem desceram do ônibus, e o golpe de relações públicas acabou virando um grande fiasco. O motivo era evidentemente religioso, mas poucos tiveram a coragem de admiti-lo com todas as letras. O mais explícito foi Robinho, que afirmou não desejar participar de um ritual religioso. Alguns jogadores ensaiaram arrependimento e uma segunda visita ao local, desta vez até saindo do ônibus. Mas a emenda ficou só na intenção, e para contornar o vexame, o jeito foi doar camisetas autografadas para a entidade.

Como é de praxe nas coberturas sobre religião, evitou-se a todo custo entrar no mérito da causa. Ficou apenas a insinuação de intolerância, sem qualquer espaço para entender ou justificar a motivação dos envolvidos. Parece que todos ficaram satisfeitos em aceitar o estereótipo de sectarismo dos evangélicos.

Duplipensar regilioso

No ano passado, a mídia em peso fez voto de silêncio a respeito do vergonhoso acordo assinado entre Brasil e Vaticano concedendo amplos privilégios ao credo de Roma e seus fiéis. A resistência dos evangélicos no Congresso foi vencida no melhor estilo fisiologista, aprovando-se uma outra lei que estende o trem da alegria a outros credos. Mas isso também não foi notícia. Neste ano, nem imagens de sexo explícito entre um padre de Alagoas e seu jovem mancebo despertaram interesse investigativo no mundo jornalístico além da equipe de Roberto Cabrini, no Conexão Repórter do SBT.

Até a cobertura da nova onda de abusos sexuais e acobertamento de pedófilos no exterior parece ser feita de má vontade. As matérias são curtas, os dados são escassos e as análises, raras. Não há a menor dúvida de que o maior país católico do mundo tem forte interesse jornalístico no tema, mas parece que também temos as maiores redações católicas do mundo.

Quando se trata de religião, quase todos os veículos e quase todos os jornalistas parecem rezar pela cartilha de Cândido: ‘As coisas não podem ser de outro modo: pois, como tudo foi criado para uma finalidade, tudo está necessariamente destinado à melhor finalidade’. Como vivemos no melhor dos mundos possíveis, nenhuma crítica é necessária. Se não é o silêncio de gozoso consentimento, vive-se de clichês e opiniões prontas.

Um desses clichês é a condenação generalizada ao rigor de prática e pensamento de muitos evangélicos, prontamente estereotipados como ‘fanáticos’. Não que seja fácil concordar com suas crenças, muito pelo contrário. O problema é teimar que os esdrúxulos são só eles. Parece não haver qualquer traço de consciência ou pudor no pensamento generalizado de que só a religião dos outros é feita de absurdos e superstições.

Não sou relativista, nem um daqueles ecumenistas da verossimilhança que afirma que ‘todas as religiões são verdadeiras’, jogando a lógica pelo ralo uma vez que elas são todas mutuamente excludentes. Pelo contrário, entendo que se já fazemos análise crítica tanto de futebol como de política, o mesmo deve acontecer com a religião. A investigação intelectual cuidadosa deve ser sempre estimulada, e a discussão em espaços comuns é uma maneira nobre e eficiente de atingir esse fim, em que pese a generalizada credulidade midiática quando o assunto é religião.

Tenho duras críticas a fazer ao neopentecostalismo e à mentalidade dos seus fiéis. Mas faço a cortesia de estender a todas as religiões, e também à ausência delas, o mesmíssimo padrão de exigência intelectual. E creio que não é demais exigir o mesmo da coisa jornalística, que tem a pretensão de ser um baluarte dos padrões de investigação e do amor à verdade.

O que deveria incomodar qualquer jornalista com um pingo de consciência é como o duplipensar religioso se incrustou na cobertura do assunto, não apenas inibindo a crítica mas apontando-a seletivamente apenas para as posições menos populares, em um espetáculo de hipocrisia. Fato curioso: o verbete sobre hipocrisia na Wikipedia em português tem uma seção especial para o tópico ‘hipocrisia e religião’ – pela qual não tenho nenhuma responsabilidade.

Mérito integral

Os evangélicos costumam ser alvos de crítica pela facilidade com que seus pastores arrancam dinheiro das ovelhas em plena luz do dia. É uma questão já bem explorada em matérias de norte a sul, e ganhou novo destaque com a divulgação de material interno da Igreja Universal do Reino de Deus contendo orientações sobre como arrecadar em tempo de crise.

O número 2 na hierarquia da entidade afirmou com todas as letras: ‘O nosso problema não é bandido, o nosso problema é polícia. Você não pode falar isso pra ninguém’. No vídeo ele acusa policiais de terem roubado dinheiro da igreja e pede aos pastores para realizarem acordos com os líderes criminosos. O ‘bispo’ poderia ser acusado pelos crimes de difamação, incitação ao crime e formação de quadrilha. Mas esse detalhe mereceu não mais que meia frase da reportagem da Folha de S.Paulo que denunciou o caso (ver aqui).

Revendo os fatos: as orientações perfeitamente legais do pastor sobre como arrecadar dinheiro deram manchete. Suas condutas possivelmente criminosas não receberam atenção nenhuma. As evidências parecem apontar que evangélicos arrecadando (mais) dinheiro, mesmo de maneira perfeitamente legal, causam mais escândalo e repulsa do que sua potencial associação com o crime. Isso em si já é grave. Conhecendo essas nobre lista prioridades, o ‘bispo’ nem se deu ao trabalho de esquivar-se da acusação de ilicítos em sua vídeodefesa).

No entanto, desejo apontar um outro problema. Não me oponho a criticar a sede financeira da instituição, a teologia da prosperidade ou os métodos dos pastores da Universal. A questão é que os métodos de arrecadação de outros grupos religiosos também estão bastante aquém de qualquer padrão de santidade ou civilidade, mas isso nunca é notícia.

Dou a mão à palmatória: mais de uma vez, a mesma Folha de S.Paulo denunciou os esquemas que Santa Madre Igreja utiliza para defender o leite, o pão, a manteiga e a geléia das crianças no inesgotável business dos casamentos e batizados. Na matéria ‘Igreja cobra mais caro por casamento e impõe serviço‘), o jornal levantou restrição de fornecedores, ‘pedágios’ e preços abusivos. Mas essa é a exceção que confirma a regra. Um dos métodos mais comuns para sustentar iniciativas religiosas, no Brasil e no mundo, é o de misturá-las a serviços de ‘caridade’ para conseguir financiamento, geralmente estatal. Dessa maneira, o dinheiro sai dos cofres públicos sob as nobres rubricas de filantropia ou serviços assistenciais. Mas acaba financiando os objetivos do credo que recebe o dinheiro, através de infraestrutura a atividades que só assistem a fins particulares. E as igrejas não escondem isso de ninguém.

É o caso das pastorais da CNBB. A Pastoral da Criança, por exemplo, é cantada em prosa e verso por seu trabalho, embora não se costume divulgar que ele é regiamente remunerado pelo Ministério da Saúde. Em 2002, eram R$ 18 milhões anuais. Em apenas 7 anos, o valor saltou para quase R$ 34 milhões, um aumento de 88%. É o governo brasileiro que provê mais de três quartos de todos os gastos da pastoral, sendo portanto o grande responsável por suas atividades. Mas quem colhe o mérito integral é a instituição religiosa.

‘Câmaras de passe’

Tudo iria bem não fosse o detalhe de que a instituição, subordinada à CNBB e à Sé de Roma, está a serviço de fins notoriamente religiosos. O estatuto da entidade afirma que as crianças, suas famílias e comunidades são assistidas ‘sem distinção de credo religioso’, mas os voluntários são obrigados a ter ‘comprimisso cristão’ e ‘vivenciar a mística da pastoral, que une fé e vida’. A própria CNBB deixa escapar: ‘Seus líderes e as famílias acompanhadas pertencem a distintas Igrejas e denominações cristãs’. Ou seja: o nível máximo de indistinção de credo que a caridade deles atinge é englobar todos os cristãos, uma universalidade que deixa de fora dois terços da humanidade.

Por que os agentes precisam ser cristãos? A resposta está nas declarações da própria entidade: ‘A missão da Pastoral da Criança é a própria missão de Jesus, que é também a missão da Igreja e de todos os cristãos: Evangelizar’. O trabalho de saúde, portanto, é apenas incidental: ‘A espiritualidade está presente em todas as ações da pastoral da criança. Todos são convidados a compreender a importância da fé e da vida, em uma visão ecumênica’. Vale lembrar que, no mundo em que vive a CNBB, ecumenismo é uma palavra que se refere a rigorosamente todos os credos religiosos. Desde que também sejam cristãos, claro.

O primeiro mandamento da Pastoral para a Paz na Família é ‘ter fé em Deus’ (o que não deixa de ser estranho considerando-se a falta de paz no religiosíssimo Oriente Médio e a abundância de paz nos países altamente secularizados da Europa). A entidade declara que parte do seu projeto tem ‘missionários leigos’. A capacitação de voluntários, bem como suas atividades incluem roteiros religiosos.

Os coordenadores da pastoral não se cansam de exaltar como são expressivos seus resultados quando comparados com o investimento que os gerou. E nem poderia ser diferente. Os voluntários da pastoral são particularmente entusiasmados porque têm uma agenda própria, que é converter o restante do mundo às suas próprias crenças religiosas.

Não parece exatamente um grande ato de filantropia. Utilizando as carências alheias e o dinheiro governamental para alavancar seus interesses particulares, é claro que o rendimento vai às alturas. E esse padrão se repete em todas as pastorais. É claro que todos os religiosos têm o livre direito de evangelizar. O inaceitável aqui é a diferença no tratamento que uns e outros recebem da mídia e da sociedade. Os evangélicos dão até manchete se procuram aumentar as doações de espontânea vontade dos seus fiéis. Em contraste, quando os líderes católicos se apropriam do dinheiro público à forma de dízimo compulsório sobre todos os cidadãos do país, recebem apenas um complacente sorriso dos jornais e da justiça.

Esse não é um caso isolado de favoritismo da imprensa. Quando jogadores evangélicos sequestram o jogo de que participaram para afirmar seus símbolos ou frases de fé, todos ficam indignados. Mas onde estavam esses mártires da laicidade quando o governo federal estampou ‘Deus seja louvado’ nas cédulas de real? Que tortuoso malabarismo intelectual utilizam para repudiar veementemente o coração da Igreja Universal em camisetas de jogadores de futebol, e calar olimpicamente quando se trata de crucifixos em assembléias legislativas, no Ministério Público, em hospitais e escolas públicas e em tribunais ad nauseam, até o plenário do Supremo? Trata-se do mais claro chauvinismo religioso.

Não temos como saber por que exatamente os jogadores do Santos se recusaram a entrar no ‘Lar Espírita’. Talvez porque um dos valores lá promovidos seja o de uma religiosidade com a qual eles não concordam. Não há mal algum nisso. Assim como fazem as pastorais, essa entidade realiza uma venda casada da assistência aos necessitados com o proselitismo da religião dos criadores da iniciativa. Se você ajudar os beneficiados pela casa, querendo ou não apoiará as atividades religiosas lá desenvolvidas, que não são poucas: cursos de evangelização para crianças, grupos de estudo sobre espiritismo, reuniões, palestras, ‘adestramento mediúnico’, três ‘câmaras de passe’ e, é claro, a ‘assistência espiritual aos internos’, também conhecida por religiosidade obrigatória: às segundas e quartas, ‘passes de vibrações amorosas’, e ‘vibrações e preces’ às sextas.

Estado laico

Grande parte da infraestrutura também está comprometida com fins unicamente religiosos: no prédio onde quatro salões abrigam internos, também há um salão ‘para palestras e cursos doutrinários’, e seis salas ‘para atendimento espiritual’. No anexo, fica a escola de evangelização de crianças. Não se trata obviamente de um lar qualquer, mas de um lar espírita. O nome é bastante adequado e corretamente descritivo. Analogamente às pastorais, parece que o objetivo primário desses grupos é realmente o proselitismo religioso, e que as pessoas beneficiadas são apenas iscas úteis, meios utilizados para outros fins. Se os jogadores perceberam isso e agiram de acordo com sua consciência, deveriam ser parabenizados, e não criticados.

Mas talvez essa análise seja sofisticada demais e os jogadores possam ser criticados pelo medo infantil de ‘influências negativas’ a que estariam sujeitos na casa, certo? Seria apenas superstição, proveniente do fanatismo e do preconceito típico de evangélicos que demoniza tudo que vê pela frente. Se você acha isso, é melhor ler seu catecismo de novo.

Ainda no mês passado, o padre Gabriele Amorth, exorcista-chefe do Vaticano (sim, isso existe mesmo) afirmou que ‘o Diabo reside no Vaticano’ e que haveria bispos ligados a ele. Amorthh também afirmou que Hitler e toda a Alemanha nazista estavam possuídos pelo tinhoso.

As crenças dos evangélicos só parecem bizarras a quem não tem o mínimo de desprendimento necessário para entender como suas próprias crenças parecem a todos os demais. Os católicos, por exemplo, deveriam se perguntar como o restante do mundo vê a ideia de que um biscoito pode se tornar verdadeiramente a carne de alguém que teria vivido na palestina de dois mil anos atrás, ou o conceito de que um homem pode ser infalível, mas só em matéria doutrinária e desde que eleito por um concílio de cardeais. Os espíritas deveriam entender que, para nós mortais, as fotos de ‘espíritos materializados’ ao lado de Chico Xavier (veja, por exemplo, aqui e aqui) se parecem exatamente com a imagem de um espertalhão coberto por um lençol barato. E assim por diante.

Por fim, àqueles que criticam a fúria proselitista dos evangélicos, cabe lembrar o Código Canônico, que em seu cânon 868 estabelece que os órfãos devem ser batizados e que qualquer criança sob perigo de morte pode ser licitamente batizada mesmo contra a vontade dos pais (ver aqui).

A lista de analogias poderia continuar, mas o argumento já ficou claro: desde que bem fundamentada, a análise crítica e a reflexão cuidadosa a respeito da religião e dos religiosos é não só bem-vinda como necessária. A incongruência surge quando essa crítica tem níveis diferentes de exigência para cada grupo religioso. Essa é uma forma tão sutil quanto insidiosa de agir, análoga à do policial que prende criminosos com extrema correção e presteza, mas que só calha de capturar os negros. É possível fazer o mal aparentando fazer só o bem. Se a imprensa deseja atingir um mínimo de imparcialidade na cobertura do fato religioso, precisa ao menos começar a tratar com franqueza as escandalosas violações à laicidade do Estado brasileiro, marca de religiosos que se apropriam do espaço público em detrimento da lei, e de todos que lhe são diferentes.

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Engenheiro, São Paulo, SP