Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Empresas versus jornalistas

Discute-se neste Observatório, com muita freqüência, qual seria a causa original e central das sucessivas crises que vêm minando a capacidade da imprensa brasileira de crescer e alcançar alguma sustentabilidade. Com a mesma freqüência escorregam as opiniões para um ponto anterior, sobre qual seria o papel social da imprensa. Ou, ainda mais atrás, quando se questiona se a imprensa teria mesmo um papel social específico a cumprir. Lateralmente, quando se tenta localizar nossa crise doméstica no contexto da crise mundial da imprensa, acabamos sem referenciais específicos para bem entender nossos problemas e melhor atacá-los.

Esse passo quadrado de merengue tem feito com que a dança das análises nos conduza sempre de volta ao ponto inicial. De que estamos falando, mesmo?

Pois bem. O texto do projeto de lei que cria o Conselho Federal de Jornalismo e os Conselhos Regionais de Jornalismo, se não tem o poder mágico de abrir uma ampla janela que nos permita entender o que se passa, traz um ponto de referência fundamental — uma pedra angular a partir da qual podemos, profissionais da imprensa e sociedade em geral, estabelecer uma linguagem comum e alguns fundamentos sobre os quais estender nossas opiniões e reflexões.

O texto resulta de muitos debates, iniciados ha mais de vinte anos, para os quais contribuíram centenas de profissionais, em variadas instâncias, e culminou num anteprojeto que foi aprovado em 10 de setembro de 2002 pela Federação Nacional de Jornalistas e todos os sindicatos da categoria. O texto foi entregue em dezembro daquele ano ao então ministro do Trabalho, Paulo Jobim. De lá para cá, percorreu muitas instâncias técnicas, perdeu o trecho que cuidava da regulamentação da profissão – tratada em legislação à parte – e, finalmente, obteve, em abril passado, o apoio explicito do presidente da República. Em 27 de maio, o anteprojeto foi assinado pelo ministro do Trabalho e Emprego, Ricardo Berzoini; na sexta-feira, 6 de julho, o presidente Lula encaminhou ao Congresso a versão que será levada à votação.

Controle rigoroso

O presidente da Associação Brasileira de Imprensa, Mauricio Azêdo, manifestou a oposição da entidade. Afirma que a proposta trata os jornalistas como profissionais liberais, e não como assalariados que são, opinando que sua regulamentação pode representar ‘uma violação da ordem democrática definida pela Constituição Federal’. As entidades representativas dos donos da mídia apenas reproduziram o noticiário a respeito, em seus boletins online. E os jornais deixam clara sua intolerância quanto a hipótese de o exercício do jornalismo vir a ser fiscalizado por um conselho profissional independente.

De modo geral, os jornais recorrem ao clássico recurso do risco à liberdade de expressão e apontam o Supremo Tribunal Federal como instância imediata para a contestação do projeto, antecipando-se mesmo à sua analise nas comissões especiais e antes de ser colocado em votação. Entre eles, a Folha de S.Paulo conseguiu nos apresentar um texto primoroso, que deveria ser preservado para estudos nas escolas de Jornalismo como exemplo de editorialização do noticiário: entre outras sutilezas, destaca-se a observação de que o encaminhamento da proposta ‘insere-se num contexto de dificuldades de relacionamento entre o governo Lula e a imprensa’, lembrando, a propósito, a infeliz frase de Lula segundo a qual ‘notícia é aquilo que nós não queremos que seja publicado, o resto é publicidade’.

O Estado de S. Paulo segue a mesma linha, no domingo (8/8), destacando na primeira página nova contribuição do infatigável ministro da Casa Civil, José Dirceu, para as boas relações entre mídia e governo, na qual ele supostamente defende controle mais rigoroso para a imprensa.

Interesse comum

O noticiário, evidentemente, tenta induzir o leitor a entender que a criação do Conselho Federal e dos Conselhos Regionais de Jornalismo resulta de um propósito do atual governo de produzir o que supostamente seria o desejo do ministro Dirceu. Em nenhuma das matérias publicadas desde sexta-feira (6/8) se esclarece que a idéia da criação do CFJ delineou-se no Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo ainda durante os debates que antecederam a votação da Constituição de 1988, após a campanha pela volta das eleições diretas. Sua versão atual foi amadurecida em muitos encontros e congressos de jornalistas, o texto ficou disponível para criticas e contribuições durante anos, e chegou-se ao anteprojeto antes de Lula ser eleito.

E bem possível que a proposta necessite ainda de muitas melhorias, e para isso servem os deputados e senadores, suas comissões e seus assessores.

O que não é possivel – e isso, sim, nos remete de volta à razão fundamental da crise da nossa imprensa – é que as cabeças coroadas da mídia continuem a manipular o noticiário naquilo que lhes interessa, desrespeitando a inteligência do leitor e tentando induzi-lo, na origem, a uma interpretação distorcida do fato.

Se há, e sempre houve, conflitos de interesse entre os profissionais e seus patrões e prepostos, deveria haver também, por cima de tudo, o interesse comum de se buscar o aperfeiçoamento da prática do jornalismo.

Que tal começar o debate por aí?