A mídia nos deu de presente de ano novo um ritual macabro. Uma das coisas mais me deixa perplexa é a violência e rezo todas as noites para nunca saber responder a esta. Ainda na faculdade, apresentaram-me a Foucault através do livro Vigiar e punir. Nesta obra, o pensador descreve a história do poder de punir como história da prisão. A instituição desta muda o estilo penal, do suplício do corpo, da época medieval, para a utilização do tempo, no arquipélago carcerário do capitalismo moderno.
Quando comecei a ler o livro fiquei horrorizada com a descrição do filósofo sobre os métodos de tortura e punição. Desde então, concordo que a melhor forma de punição é privar alguém da liberdade. Acredito que, desde uma criança a um terrível bandido, a melhor maneira de punir é tolher o indivíduo do livre-arbítrio.
2006 foi o ano da mídia. Foi um ano que nos trouxe muitas reflexões aqui no Brasil. Revistas, jornais e principalmente os telejornais trataram dos mensalões, propinas, incêndios de ônibus e uma infinidade de discussões sobre como punir os famosos colarinhos brancos e como punir os bandidos de carteirinha. Para encerrar este ano atípico, nos apresentam a condenação e morte por enforcamento de Saddam Hussein. Novamente, o ritual televisivo da violência. Desta vez, alegaram que se tratava de imagens captadas por um celular.
Uma forma medieval de condenação
Não gostava dele. Achava-o um assassino cruel e sanguinário e, se de mim dependesse, amargaria o resto da vida na prisão. Daí a satisfazer os desejos do Senhor da Guerra George W. Bush há um abismo muito grande. E qual é o papel da imprensa numa hora dessas? Quanto pior, melhor para ser mostrado? Em todas as matérias apresentadas, a versão do dominador sobre o dominado passou a vigorar. Faltou, com algumas poucas exceções, mostrar o outro lado da história. Expor os leitores, ouvintes, telespectadores e internautas às diferentes versões de todos os culpados.
A sensação que me passa é de que a imprensa está sempre nos apresentando uma pedagogia maniqueísta onde os mocinhos são aqueles mesmos da cavalaria dos bang-bangs.
Por que a mídia não mostrou que o tribunal que julgou Saddam não foi o Tribunal de Haia? Por que não mostrou que os Estados Unidos se opunham ao Tribunal Penal Internacional? Nesta hora, era preciso opinar de forma contundente pelos direitos humanos. Como jornalistas, temos que defender o principal órgão judiciário da Organização das Nações Unidas. E mostrar por que os Estados Unidos não reconhecem esse tribunal. Tudo isso precisa vir à tona quando analisamos a velocidade da condenação e a rapidez na execução da sentença de uma forma medieval. Por que não condená-lo a prisão perpétua? Em Foucault, a instituição da prisão substitui o espetáculo punitivo da sociedade feudal através da ideologia do contrato social. Quando nos tornamos membro de uma determinada sociedade é preciso aceitar as normas e a prática de infrações determina aceitação da punição.
Jornalistas, somos reféns
Quem, além de Saddam, infringiu as normas? Seu antigo aliado George W. Bush? Quem estava ao lado de Saddam e incentivou o ditador a invadir o Irã em 1980? De quem ele comprou os componentes para lançar armas químicas tanto contra o Irã como contra os curdos? Quem é o principal culpado de tudo isso? Em Haia, talvez todas as respostas fossem dadas e a punição para tantos horrores iria lotar a prisão não só com Saddam, mas também com Bush, Rumsfeld e Blair, entre outros.
A corda no pescoço de Saddam enforcou-nos a todos da liberdade de se pensar uma sociedade mais humana, justa e moderna. Trouxe-nos a sensação de Talião ou, ainda pior, de que não entramos ainda no século 21 e padecemos nas trevas medievais.
E, pior ainda, mostrou-nos que, enquanto jornalistas, somos reféns condenados aos interesses dos Estados Unidos.
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Jornalista e professora da Universidade Federal do Piauí, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ