A frase é atribuída a Joseph Goebbels, ex-ministro da Propaganda nazista: “Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”. Tem sido esse o tom histórico dos discursos de empresários da comunicação, no Brasil, quando se colocam como paladinos das liberdades de imprensa e de expressão. A falácia foi ao ar, pela enésima vez, na edição de sexta-feira (27/5) do Jornal Nacional (Rede Globo), em reportagem fake de Cristina Serra.
No asséptico auditório do Supremo Tribunal Federal (STF), magistrados, políticos e executivos dos principais grupos de comunicação do país reuniram-se para falar o mais do mesmo, por ocasião do Fórum Internacional Liberdade de Imprensa e Poder Judiciário, promovido pela Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) e Associação Nacional dos Jornais (ANJ). A começar pelo presidente do STF, ministro Cezar Peluso, que atribuiu à “liberdade de imprensa” um poder quase sobrenatural no tocante à democracia: “É a única maneira de o povo conservar sua liberdade e poder julgar seus governantes”.
Esse ato falho de Peluso reafirma o “poder” que os barões da mídia se autoatribuem: o de ditar o rumo dos supostos “julgamentos”, nos quais parafraseando o brilhante jornalista Frederico Vasconcelos, repórter é policial, redator assume a função de promotor e editor-chefe veste a toga de juiz. Ora, o direito de os empresários imprimirem e venderem a informação (to print) não pode ser visto como “única maneira” de a sociedade “conservar sua liberdade” e, o mais grave, “de poder julgar seus governantes”.
Tática da invisibilidade
Outra voz destacada no evento foi a de Judith Brito, presidente da ANJ. Repetindo a mesma cantilena, a executiva do Grupo Folha vaticinou: “A liberdade de expressão está sob ameaça em alguns países da América Latina. Eu cito aqui o caso da Venezuela, o caso mais antigo de Cuba e o caso da Argentina, que era um país com tradição democrática e que, nos últimos tempos, tem vivido processo preocupante de reversão”. Ato contínuo, Judith entregou o prêmio “ANJ de Liberdade de Imprensa” ao jornal argentino Clarín, que estaria sob ameaça do governo Cristina Fernández de Kirchner.
O homenageado Ricardo Kirschbaum, editor-geral do maior jornal da Argentina desde 2003, em entrevista à Folha, reconhece que o “governo criou uma lei (Lei de Serviços Audiovisuais, em 2009) com o objetivo declarado de promover a diversidade e ter uma atitude antimonopólica”. Ao mesmo tempo, ele adverte quanto ao fato de o governo argentino querer “criar muitos meios que dizem o mesmo e que dependem de um só financiamento”.
O texto do JN se ampara numa hipótese insustentável, repetida pela repórter Cristina Serra, sem nenhum rubor: “Para os participantes, o fim da Lei de Imprensa foi fundamental para consolidar a liberdade de comunicação no Brasil. A lei, da época da ditadura, foi derrubada pelo Supremo há dois anos”. Até aqui nenhuma novidade, contudo a jornalista da Globo prosseguiu: “Porém é preciso avançar mais. Alguns estudiosos defendem uma legislação que permita o acesso da imprensa a documentos públicos”. Em síntese, o grande avanço que os empresários da comunicação defendem – bem como seus arautos bem posicionados no front midiático e no Congresso Nacional – seria uma nova lei que garantisse o acesso às informações e documentos públicos.
A própria reportagem de Cristina Serra é uma síntese mais acabada do tipo de “liberdade de expressão” e do direito “democrático” à comunicação que as grandes empresas praticam dia após dia, desde sempre: nenhuma voz discordante fala na reportagem. O debate consolidado na 1ª Conferência Nacional da Comunicação (Confecom, dezembro de 2010) por setores representativos da sociedade, incluindo-se empresas do porte da Band e outras emissoras regionais, é simplesmente ignorado, condenado ao gueto da invisibilidade midiática. Longe de ser um “acidente de percurso”, trata-se, na real, do percurso do acidente antidemocrático que historicamente marca as relações da mídia brasileira com a sociedade.
Papel nefasto
Para ficar só num exemplo atual e acachapante dessa prática “democrática”, cito Susana Singer, ombusdman da Folha de S.Paulo, em sua coluna dominical (29/5). Susana analisa a cobertura do maior jornal diário do país no caso do novo Código Florestal:
“Outro pecado da Folhanessa cobertura foi a falta de variedade de fontes. A senadora Kátia Abreu (ex-DEM), que assumiu a liderança da campanha pró-mudança do Código, escreveu, em dois meses, cinco artigos, dois com chamada de capa – além de ter sido entrevistada no dia 26 de abril. Não se trata de diminuir o espaço dado aos ruralistas, inclusive porque pesa sobre eles um imenso preconceito, mas de diversificar, de trazer novas vozes para o jornal. O esforço didático também deixou a desejar.”
Infelizmente, tanto empresas quanto profissionais do jornalismo, desde o fim da Lei de Imprensa (extinta pelo STF, que nada colocou em seu lugar), o setor das comunicações vive um “vácuo jurídico”, balizado pela sentença que sai da cabeça dos mais de 20 mil magistrados da Justiça Comum, que têm buscado arbitrar os conflitos entre imprensa e sociedade. É inadiável o debate sobre um novo marco jurídico para a comunicação, que resgate, por exemplo, os artigos 220 a 224 da Constituição Federal, que esperam uma regulamentação democrática há mais de 21 anos.
A censura togada ao jornal O Estado de S. Paulo é o exemplo definitivo dessa ausência de marco regulatório, que deixa jornalistas e empresariado da comunicação à mercê de decisões desencontradas. Neste caso, em tese, os tribunais de primeira e segunda instância são mais suscetíveis à pressão do forte lobby dos barões da mídia.
O irrefutável, no emblemático evento abrigado pela mais alta corte da Justiça brasileira, é a sintonia entre a elite empresarial da comunicação e um poder totalmente avesso às demandas por informações emanadas dos jornalistas e da própria sociedade. O jornalista Frederico Vasconcelos é um dos casos raríssimos de repórter investigativo que conseguiu furar esse bloqueio. Ele escreveu uma excelente e lapidar obra – Os juízes no banco dos réus – que disseca as desventuras dos juízes Nicolau dos Santos Neto (o Lalau) e João Carlos da Rocha Mattos, condenados por venda de sentenças e outras práticas criminosas.
Convém lembrar, sempre, o papel nefasto desempenhado por entidades como a SIP, na América Latina, e ANJ (e seus principais membros) durante o período de trevas, repressão, assassinatos e retrocesso das ditaduras militares. Lá e cá, o bumbo da mídia sempre bateu em descompasso com o interesse público, afinado tão-somente às demandas do poder de ocasião.