A edição dominical de O Globo (10/10) estampava, como manchete: ‘Aborto ilegal mata a mulher a cada dois dias’. O fato tem duas implicações: 1) o caráter político da matéria jornalística; 2) a questão do Estado brasileiro.
É sabido que, há décadas, o tema do aborto, vez por outra, ressurge como um fantasma a rondar as consciências, sem que jamais a sociedade brasileira encontre um modo democrático capaz de lhe destinar uma solução. Em princípio, devemos reconhecer que a nenhum segmento parece interessar um desfecho conclusivo. Assim, a questão permanece pairando no ar. A pergunta primeira, portanto, é: por que O Globo, exatamente, no dia do primeiro debate do segundo turno, sob a chancela da TV Bandeirante, elegeu o tema para manchete? Igualmente é sabido por todos que a candidata situacionista teve oscilações quanto à questão. Ainda no primeiro turno, veio à tona um depoimento da candidata no qual ela se manifestava a favor da legalização do aborto. Em seguida, a mesma, sob alegação de que se tratava de ‘boataria’, deu declaração de que era a favor de uma política de assistência à mulher jovem.
O que interessa aqui é a motivação jornalística em torno da questão (contra ou a favor do aborto) no tocante à ocasião. A intenção do jornal, com base nos dizeres da manchete, foi a de induzir o (e)leitor a considerar que a prática do aborto deve ser legalizada, uma vez que a ilegalidade ‘a cada dois dias’ leva uma mulher para o túmulo. Considerando-se que a candidata situacionista havia desmentido ser favorável à legalização, fica evidente o propósito do jornal em, ao menos, criar um ‘embaralhamento das cartas’ na consciência do (e)leitor. Devemos lembrar que o tema está associado à candidata situacionista, e não ao oposicionista. A conclusão, portanto, é a de que a matéria publicada nesse contexto de definição eleitoral tem um condimento de manipulação.
O quadro catastrófico
No âmbito do Estado brasileiro, descartadas as circunstâncias a envolverem uma eleição majoritária em segundo turno, cabe pontuar a perplexidade ante a perpetuação do que parece ser um tabu. O Brasil, dentre outras características pouco louváveis, apresenta uma especialmente nefasta: a dubiedade (ou a indecidibilidade). A rigor, o que predomina é o regime do ‘parecer ser’. Como cidadão, até hoje, não sei se vivo num Estado laico ou teocrático. Por momentos, tenho um pé na modernidade; em outros, tenho um pé na Idade Média. Oficialmente, é-me dito viver num Estado laico. Todavia, na Câmara e no Congresso está afixado um crucifixo. As sessões diárias são abertas, invocando a proteção divina (há anos, escrevi um artigo, para o OI, no qual fazia alusão aos dois fatos). A respeito do aborto, nenhum governante (ou parlamentar) assume o problema, no sentido de se promover um plebiscito, exceção feita à candidata Marina Silva, que, apesar de evangélica, identificou ser esse o instrumento mais adequado para uma definição.
No quadro geral, mídia e políticos fingem não existir o problema. Quem, porventura, ousar tocar na questão logo será alvo de um cerco opressor. CNBB e a rede de seitas evangélicas se encarregam de construir uma muralha de proteção, de modo a inibir qualquer tentativa de análise conjuntural. Em nome da defesa pela vida, não se leva em conta quem morre. Sob tal aspecto, a matéria de O Globo, na própria manchete, define o quadro catastrófico: ‘a cada dois dias’ uma mulher-mãe tem de morrer, a fim de preservar a vida de um feto.
Impõe-se a discussão madura
Mesmo à luz dos preceitos religiosos, quem poderá assegurar que o princípio é justo ou lógico? Quem estabelece que a vida de uma adolescente grávida é menos importante que a de um ‘projeto de vida’? Para que existe o conceito de ‘livre arbítrio’? A teologia cristã apregoa essa condição. Se ela é para ser seguida, então cabe a cada pessoa decidir o que fazer e assumir, para si, o ônus da decisão. Deste modo, se o Estado brasileiro é oficialmente laico, igualmente deve assim proceder, ou seja, cada indivíduo deve ter o direito de escolher. Em caso contrário, temos de assumir que o Estado brasileiro é governado por um regime teocrático e, ainda assim, com o embaraço do que quer dizer o conceito de ‘livre arbítrio’.
Enfim, é hora de sabermos se colocamos os dois pés na modernidade, ou se deixamos um na Idade Média e outro na modernidade. Fora isso, o que resta é um comportamento ‘esquizofrênico’, para não considerar hipócrita, ou atrasado. Outro fato ainda agrava o cenário nacional: a cada eleição, cresce o número de parlamentares vinculados a facções religiosas. A história é pródiga em demonstrar que o conceito de democracia se situa numa angulação oposta à de teocracia. Deste modo, a questão do aborto, numa sociedade composta de seres livres, impõe uma discussão madura e aberta, à altura de contemplar crentes, ateus, agnósticos (e outros) e, por fim, chegar-se a um denominador majoritário, a exemplo do que tantos outros países já, há muito, fizeram. Não consta que sociedades ocidentais optantes pela legalização do aborto se tenham revelado, aos olhos do restante do mundo, como sociedades cruéis e insensíveis. Curiosamente, nessas mesmas sociedades, não se veem indigentes dormindo ao relento, nem pedintes em sinais de trânsito. Por que será?
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Ensaísta, articulista, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da FACHA (RJ)