Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Entre a razão e a sedução

Em 1944, os cigarros Camel tinham uma difícil missão. A empresa precisava aumentar a sua participação no competitivo mercado americano; contudo, havia pouca possibilidade de ampliar o número de fumantes. A única chance de impulsionar suas vendas era, portanto, tomar os clientes de outras marcas. Mas para isso precisava convencer os fumantes – teimosos como eles só e muito fiéis às suas marcas preferidas – a ao menos experimentarem os cigarros Camel.


Foi então que surgiu uma das campanhas mais caras e ousadas da história da publicidade. A mídia foi bombardeada por materiais publicitários que tinham o curioso slogan ‘More Doctors smoke Camels than any other cigarette’ (Mais médicos fumam Camels do que qualquer outro cigarro). O apelo à saúde nos parece ridículo hoje, mas é necessário lembrar que apenas no final da década de 1950 e início da década de 1960 começaram a aparecer os primeiros estudos revelando os malefícios do cigarro. Até então, fumar era tido como algo não apenas prazeroso, mas até saudável.


Porém, pouco nos importa agora a natureza dos argumentos, e sim, a existência deles. A linguagem publicitária até então era preponderantemente destinada aos cérebros, e o principal trabalho de um publicitário era convencer o público de que o produto que anunciava tinha qualidade superior à de seus concorrentes. Portanto, eram necessários argumentos racionais, se possível com algum embasamento científico.


‘Liberdade de expressão comercial’?


E haja latim para tanto! No filme que fez parte da campanha, o texto publicitário de um minuto de duração usa exatas 154 palavras para informar que, em uma pesquisa de opinião, descobriu-se que os médicos fumavam mais Camels do que qualquer outro cigarro. (Clique aqui para assistir ao vídeo, com legendas e transcrição dos textos em inglês e português).


Façamos uma longa viagem no tempo e avancemos até a década de 1980. Um comercial dos cigarros Hollywood marcou época no Brasil. Um minuto de filme publicitário, 47 cenas belíssimas, e apenas três palavras: Hollywood, o sucesso (ver aqui). Ao fundo, a música Breaking all the rules, de Peter Frampton, que paradoxalmente fala de uma geração cheia de raiva e que está cansada de ser usada.


O que ocorreu nesse salto de mais de 40 anos? Fomos do início ao fim de uma história na qual os textos publicitários deixam de falar aos cérebros para mirar os corações. A evolução da linguagem publicitária fez com que ela fosse deixando de lado aos poucos a razão para se tornar, cada vez mais, sedução. Não é exatamente uma novidade. Há muito tempo, Althusser já advertia que a ideologia das sociedades capitalistas é formada por representações que pouco têm a ver com a consciência. Em uma sociedade do consumo, o aparelho ideológico publicitário nada mais fez, portanto, do que seguir uma tendência inerente ao próprio capitalismo.


Mas o que nos salta aos olhos é a maneira nada velada como a publicidade realizou essa transição do racional ao irracional, da razão à sedução. E em um caso como o do cigarro, no qual os argumentos racionais em favor do consumo do produto foram progressivamente sendo refutados, a sedução publicitária se torna ainda mais presente. O que nos leva a dois questionamentos. Há informação relevante na publicidade? E há a necessidade de defesa da liberdade dessa informação, como clamaram os defensores do inusitado conceito de ‘liberdade de expressão comercial’? Esses serão temas para o próximo artigo.

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Jornalista, mestre em Comunicação pela Universidade de Brasília e consultor legislativo da Câmara dos Deputados; editor do blog Museu da Propaganda