Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Entre a verdade, a censura e a xenofobia

O inciso III do Artigo 221 da Constituição Federal, como um dos condicionantes da programação televisiva, está voltado à capacidade de tal programação moldar a própria cultura da população. Já é mais do que corriqueira, tanto entre sociólogos como quanto entre juristas, a idéia segundo a qual a mensagem na televisão colhe o espectador desprevenido, de assalto, sem que ele possa esboçar qualquer tipo de reação. Dir-se-á que sempre existe o botão de desligar, o que é correto e, no meu caso particular, raramente ligo o aparelho de televisão.

Entretanto, não se pode negar o fato de que, na maior parte dos lares urbanos brasileiros, a televisão está ligada e constitui o principal meio de lazer da família. E, por outro lado, por meio daqueles sons e imagens, os valores alienígenas vão-se introjetando de um modo tão agressivo que, paradoxalmente, se mostra até insidioso. Nem se pretenda argumentar, no caso, com o sucesso das telenovelas – produzidas no Brasil, é verdade, mas que veiculam, por vezes, enfoques mais próprios dos países do Primeiro Mundo, mesmo quando versam temas de interesse aparentemente regional. Os estereótipos do nordestino tacanho e miserável, do ‘glamour’ da vida em São Paulo e Rio de Janeiro – como se o denominado ‘Brasil civilizado’ se resumisse a estas duas grandes cidades (e sem qualquer desdouro para nenhuma delas) – como verdadeiras versões tropicais de Nova Iorque, todas estas versões pasteurizadas do Brasil que, ao fim, não deixam de ser a manifestação do complexo de inferioridade das próprias elites locais, frustradas por não terem nascido na metrópole.

Colocam-se, aqui, três ordens de indagação: a da fronteira entre a produção de arte e a produção de indústria cultural, a própria ligação entre política cultural e política econômica, bem como os limites que não podem ser ultrapassados para que se não degenere em mera censura ou xenofobia.

Tribunal paralelo

As grandes questões, realmente, que se colocam, quando se vê o problema do tratamento jornalístico do fato, são tanto as distorções – não precisa haver mera invenção do fato, basta truncá-lo – quanto a omissão de circunstâncias relevantes, que podem influir na avaliação num sentido contrário ao que desejam os interesses representados nos meios de comunicação. Em meu opúsculo ‘Os meios de comunicação no Direito Econômico’, editado por Sérgio Antônio Fabris, 2003, desenvolvo o último capítulo de outro livro meu, ‘O capital na ordem jurídico-econômica’, editado por Sérgio Antônio Fabris em 1998, com a preocupação de demonstrar como o tratamento da informação como mercadoria implica, muitas vezes, a definição do conteúdo desta mesma informação por um critério de lucratividade, e não de veracidade.

Assim, conforme a possibilidade de atingir a um maior ou menor número de consumidores, um fato pode ou não ocorrer. Um fato fictício narrado pela mídia passa a ser considerado verdadeiro, como ocorreu, por exemplo, com A guerra dos mundos, de H. G. Wells, irradiada pelo jornalista e cineasta Orson Welles. Um fato verdadeiro que a mídia omita, simplesmente, é tido como inexistente.

Basta verificar a última revista Veja, que pinta, literalmente, os servidores públicos, como um todo, como marajás bem-remunerados, imputando a corrida para o serviço público ao sufoco da iniciativa privada pelo Estado, omitindo que é do mesmo vilão que vêm os incentivos tão bem-vindos, do mesmo vilão que a socorre no caso de se mostrar inepta (vide Proer), do mesmo vilão que somente pode se movimentar – e isto pode ser encontrado tanto na obra do grande administrativista do Império, o Visconde de Uruguay, no seu Ensaio sobre o Direito Administrativo, Rio de Janeiro (Typographia Nacional, 1862, t. 1, p. 75), como na obra do constitucionalista que tanta repercussão tem cá no Brasil, dada a sua genialidade, embora tenha sido o grande jurista do nazismo, Carl Schmitt, em Legalidad y legitimidad, trad. José Díaz García (Aguilar, 1971, Madri, 1: p. 20). O papel da mídia como tribunal paralelo, sem contraditório, em que o poder econômico tem todo o espaço para proclamar seu absolutismo, e a necessidade de um controle sobre ela, justamente para que se não venha a converter em fonte de poder despótico – como o é todo poder sem controle –, o que não se confunde com a censura, eis o grande desafio que se coloca.

Como disse Luciano Martins Costa no seu excelente texto, publicado no Observatório da Imprensa de 16 de março de 2004, ‘as análises que o leitor tem recebido não contemplam, por exemplo, a responsabilidade do sistema financeiro internacional na migração e validação de recursos que conectam a corrupção e o crime organizado ao terrorismo. No entanto, em qualquer conversa de botequim os cidadãos mais atentos dão mostras de entender as relações entre a liberdade com que um mafioso monta uma rede de máquinas de jogo viciadas numa cidade brasileira e a rede de proteção que traficantes e contrabandistas alugam para terroristas na tríplice fronteira de Foz do Iguaçu. Ou a facilidade com que uma arma de alto poder de fogo viaja entre uma favela do Rio de Janeiro e uma fazenda no interior do país, podendo ser usada para o assassinato de um fiscal que investiga o trabalho escravo’.

E, por outro lado, a capacidade da mídia instantânea de induzir comportamentos, simplesmente porque não pede ao receptor da informação que a mastigue e digira, mas, ao contrário, que a assimile, ainda que tomando referenciais não mais existentes, numa época em que o próprio paradigma fixado desde o fim da Idade Média e mantido pelo liberalismo, do Estado como instância máxima de poder, vem sendo questionado, para dar lugar a um poder difuso, que debilita inclusive o Poder Público, seja lícita, seja ilicitamente.

Reconheço que têm sido recorrentes minhas manifestações neste Observatório, tanto em relação à duplicidade de pesos e medidas quanto no que tange à fronteira entre a verdade e a conveniência. Mas a preocupação com a capacidade de distorção por parte da mídia é que justifica a existência de espaços como este em que estou a escrever.

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Advogado em Porto Alegre, doutor em Direito pela UFMG