Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Entre o Estado mínimo e o divã

Em diversas ocasiões a imprensa brasileira tem se comportado como se o Estado fosse um mal em si mesmo e a sociedade um bem infinito. Nessa luta do Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro – não é preciso dizer de que lado jornais e revistas dizem estar – há um largo espaço para as mais absurdas inconsistências. Isso porque, na hora do aperto, é ao Dragão, e não ao Santo, que se voltam as preces. Exemplo maior do alto grau de dissociação, no sentido psicológico, de alguns veículos de comunicação está na recente campanha fomentada pelo governo para comprimir o orçamento do Poder Judiciário e do Ministério Público em nome da austeridade fiscal.

Não se pretende fazer aqui ou alhures uma defesa irrestrita do sistema estatal de solução de controvérsias, controle da Administração Pública e aplicação da lei. Muitas das críticas duríssimas que a imprensa dispara contra o Judiciário e o MP têm inteira procedência. Em relação ao controle dos atos dos outros poderes, ninguém duvida de que o Judiciário, sobretudo em suas mais altas instâncias, simplesmente não funciona. Tampouco será novidade para o observador atento a eventual captura do Ministério Público por ideologias que se atribuem a condição quase divina de única interpretação possível do interesse público definido na Constituição. Ainda falta um grau maior de controle externo sobre ambas as instituições, mesmo depois da Reforma do Judiciário, e as pressões remuneratórias sempre foram muito intensas dentro das respectivas carreiras.

A questão é que no frenesi ideológico do desmonte do Estado corporativo e burocrático, sem indicar que tipo de Estado deve substituir esse que aí está, a imprensa se vê inebriada pela falácia da negação de que tribunais, para julgar, têm um custo, assim como o MP para investigar, acusar, defender direitos coletivos e controlar os atos do governo. Esse custo seria exagerado hoje no Brasil? É muito provável que a resposta seja afirmativa. Mas para chegar a essa conclusão deve-se argumentar, não apenas fazer cálculos de percentagem do ensino fundamental e ouvir os ‘especialistas em contas públicas’ de sempre – portadores de uma visão ideológica coincidente com a da maioria da opinião publicada nos jornais.

Conflito violento

Aliás, podemos resumir a opinião da imprensa brasileira sobre as despesas do MP e da Justiça nisto: os jornalões e as revistas pedem segurança jurídica, mas não querem um Poder Judiciário de verdade. Não é preciso ir muito longe na pesquisa do material empírico (reportagens e editoriais) para chegar a tal conclusão. As opiniões concretas são bem conhecidas. Como se diz no foro: os fatos notórios não demandam prova.

Alguns exemplos incontroversos nos bastam. É quase um consenso dizer que alguém tem de emprestar força aos contratos, e reclamar para isso um Judiciário eficiente, mas logo em seguida espancar a Justiça (o MP com ela) e as liminares que paralisam obras de infra-estrutura. Sempre que se tem um aumento de tributos considerado inconstitucional, jornais e revistas em bando externam sua irrestrita confiança nos tribunais para restabelecer a ordem jurídica, porém logo denunciam com veemência os ‘privilégios da toga’. Diante do avanço da criminalidade, exigem a realização de mais investimentos na Justiça Criminal, só para lembrar, dias depois, que o Judiciário é um pródigo que tem de ser interditado por gastar além da conta.

De modo unânime rejeitam as tentativas de aprovação da ‘lei da mordaça’, numa defesa vigorosa do direito à informação, só que insistem em desancar a autonomia administrativa e financeira do Poder Judiciário e do MP – ignorantes, talvez, de que independência e imparcialidade sem dinheiro são apenas palavras bonitas. Por fim, celebram a liberdade de imprensa e endeusam a magistratura como ‘última trincheira da cidadania’, mas acham que juízes e procuradores têm que receber o mesmo salário do último contínuo da repartição.

Como se explica isso? Numa analogia com a psique individual pode-se dizer que o altíssimo grau de comprometimento da dissociação, que ora afirma, ora nega, a importância do Judiciário e do MP constitui um reflexo do conflito violento entre a consciência do ego e a pressão de conteúdos inconscientes. Há duas opiniões que se alternam conforme a maior ou menor defesa do ego. Assim se produzem tantas e tão flagrantes contradições.

Algo de patológico

De um lado, situa-se no plano da consciência a noção clara do papel do Estado na organização da sociedade e seu correlato: a idéia de que direitos fundamentais não podem ser assegurados sem a existência de um sistema jurídico operado por agentes públicos da mais alta qualidade intelectual, com boa remuneração e dotados de estrutura compatível com a importância de suas funções. Nas profundezas do inconsciente, de outro lado, habita uma furiosa vaga conservadora que se caracteriza por quatro pontos: a) a identificação dos direitos fundamentais com liberdade e propriedade apenas; b) a atribuição aos juízes do papel subalterno e neutro de árbitros nas disputas entre indivíduos e organizações; c) a pretensão de negar ao Estado qualquer função de organização da vida social de que resultem deveres específicos de proteção de interesses coletivos não identificados com a soma dos interesses individuais; d) o conceito de que os servidores públicos têm de pagar as contas no fim do mês com ‘espírito público’ e não com reais.

Essa ideologia conservadora às vezes irrompe no limiar da consciência e leva os jornalões a uma conduta típica de ‘possuídos’ que nos maravilham com a inesgotável capacidade de produzir sem-sentido. Devo dizer que não tenho nada em particular contra um ataque bem fundamentado às ideologias do Estado contemporâneo e suas premissas básicas. Robert Nozick pode ser tão encantador quanto os articulistas do Le Monde Diplomatique – e bem mais convincente em sua defesa do Estado mínimo e da autonomia da sociedade do que os pregadores de uma nova ordem mundial baseada na caricata e irreal ‘solidariedade dos povos’. Ocorre que a alternância de atitudes radicalmente opostas em relação ao MP e ao Poder Judiciário parece ser antes sintoma do que argumento.

A tendência de conferir a órgãos do Estado a defesa de valores tão importantes para a democracia e negar-lhes a priori os meios de atuação tem algo de patológico. Trata-se de um problema que a imprensa brasileira terá de resolver no divã.

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Procurador da República, aluno do Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito da PUC-SP, ex-repórter da Gazeta Mercantil (1999-2001)