Ele foi assessor de imprensa da Seleção Brasileira por quase três anos em um dos períodos mais conturbados da CBF, a época do escândalo em torno do técnico Wanderley Luxemburgo. Foi o responsável pelo surgimento da primeira emissora de rádio FM do Brasil, a Rádio Cidade. Carlos Lemos, 65 anos, hoje assessor de imprensa da Empresa Caminhos Aéreos Pão de Açúcar, emprego que tinha antes de ser assessor da CBF, relata um pouco da sua experiência naqueles dias.
Lemos acompanhou a Seleção na Copa de 58, a primeira que cobriu. Nesta entrevista, ele também traça um paralelo entre as coberturas da Seleção pela imprensa na sua época de repórter e no momento atual, como assessor. Esteve também nos mundiais de 62, 66, 70, 86, 90 e 98, como repórter, chefe de reportagem e até mesmo como convidado da CBF.
Trabalhando atualmente em um dos lugares mais belos do mundo, o Pão de Açúcar, Lemos nos recebeu em seu escritório de uma forma descontraída e assim nos contou as suas histórias e ‘causos’, como o dia em que botou o campeão mundial de boxe Muhammad Ali para correr, nos seus 40 anos de convívio com a Seleção Brasileira.
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Por quanto tempo trabalhou como assessor da Seleção Brasileira?
Carlos Lemos – Trabalhei como assessor de imprensa da Seleção Brasileira de 2000 a 2002.
Como a Seleção entrou definitivamente em sua vida?
C.L. – Aí são duas coisas diferentes: Como ela entrou na minha vida e como ela entrou no meu trabalho. Eu assisti à Copa do Mundo de 1950. Meu pai me levou a todos os jogos da Seleção no Maracanã, inclusive aquele famoso jogo final, que o Brasil perdeu para o Uruguai. Nós estávamos sentados atrás do famoso gol do Gigghia, à direita da tribuna oficial. Em 1958, a Seleção Brasileira entrou no meu trabalho. Eu fui mandado pelo Jornal do Brasil para cobrir a Copa do Mundo na Suécia.
Como era feita a cobertura naquela época?
C.L. – Éramos apenas 12 ou 14 repórteres brasileiros. Não é essa loucura que é hoje em dia. Naquele tempo não havia televisão. Ao vivo mesmo só a transmissão pelo rádio. Nesse Mundial surgem dois gênios do futebol: Pelé e Garrincha. Eles só entraram no time devido à pressão direta de alguns jogadores e de alguns jornalistas, também. Isso é algo muito difícil de acontecer hoje em dia. Como éramos poucos jornalistas, o contato com o pessoal da Comissão Técnica era mais direto, não havia a figura do assessor de imprensa.
Quem foram esses jornalistas que fizeram pressão?
C.L. – Da imprensa, quem chegou junto ao Feola e pediu a escalação de Garrincha e Pelé foram: Armando Nogueira, que era da revista O Cruzeiro; Luis Carlos Barreto, esse do cinema, e que era repórter fotográfico de O Cruzeiro; Oduvaldo Cozzi, que era locutor principal da cadeia de rádio dos Diários Associados.
Continuando a falar sobre cobertura da Copa do Mundo, como vocês que eram de jornal, enviavam as matérias?
C.L. – Naquele tempo ainda não existia telex, fax, e internet nem pensar. As matérias eram mandadas por telegrama. E o meu telegrama após a final foi: ‘Tal como Rahn ganhou a Copa para a Alemanha, em 54, e Gigghia ganhou para o Uruguai em 50. Garrincha acaba de ganhar a Copa para o Brasil.’ Pelé foi importante? Foi. Mas Garrincha foi o grande construtor do título. A gente nem sabia como era o nome do Pelé. Se era Pele, Pelê, sei lá.
E foi a partir daí que a Seleção ganhou essa notoriedade com a imprensa…
C.L. – Claro. O título de 58 fez com que o Brasil crescesse aos olhos do mundo. Não só despertou um amor maior do brasileiro, mas também ganhou respeito internacional.
Essa relação de proximidade com a Comissão Técnica e a falta de recursos na transmissão contribuíam para produzir histórias que não são bem a verdade, não é?
C.L. – Você quer histórias pitorescas? Em 1962, no Chile, eu fui como consultor do Jornal do Brasil. Na equipe havia uma ‘cria minha’, que era o Sandro Moreira. O Sandro sabia mentir como ninguém. Era um mentiroso de marca maior, só rivalizava com João Saldanha. E o Sandro inventava para o Mário Filho, que era dono do Jornal dos Sports, fatos sobre os jogadores. O Mário Filho escreveu um livro de 400 páginas, onde tem pelo menos umas 50 mentiras do Sandro Moreira. Bom, o Sandro contava as mentiras, e eu confirmava.Um dia antes da semifinal contra o Chile, o Mário Filho perguntou: ‘E aí Sandro, quais são as novidades’? Sandro Moreira respondeu: ‘Garrincha sonhou que o Brasil vai ganhar de 2 x 1, e ele vai marcar um gol’. O Mário Filho foi e botou isso no jornal. No dia seguinte, o Brasil ganhou por 4 x 2; Garrincha fez dois gols. Mário Filho foi tirar satisfações com o Sandro Moreira: ‘Como é Sandro, e o sonho do Garrincha’? Sandro Moreira sai com essa: ‘Garrincha disse que o pai dele não entende nada de futebol’.
Em 1966 houve aquele desastre, que foi a eliminação do Brasil na primeira fase. Ninguém esperava isso. Foi um baque muito grande?
C.L. – Aquilo foi um papelão! O Brasil foi campeão em 58 e 62. Quando chega em 66, aquela bagunça toda. Chegaram a ser convocados 60 jogadores para a fase de preparação em Araxá-MG. Ninguém sabia quem era quem, entrava todo mundo na concentração. Mas aquela foi a Copa em que eu mais me diverti. O Brasil foi eliminado logo de cara, então sobrou tempo para a gente curtir um pouco a Inglaterra até o final da Copa. Nesse período já éramos 50 jornalistas brasileiros cobrindo a Copa. Veja você, éramos apenas 12 em 1958, e já éramos 50 em 1966. Foi nessa Copa que eu botei o Muhammad Ali para correr.
Muhammad Ali!?
C.L. – No dia da final, entre Inglaterra e Alemanha, fui assistir ao jogo. Cheguei na tribuna oficial e fiquei procurando o meu lugar. Eram lugares numerados. Aí quando eu encontro o meu lugar, tem um monte de gente em volta e um sujeito sentado nele. Era o Muhammad Ali, que na época ainda se chamava Cassius Clay, e já era campeão mundial de boxe. E estava aquela ‘zoeira’. Jornalistas do mundo inteiro, e tal. Eu pensei: ‘Tá legal, deixa ele lá’. Faltando dez minutos para começar o jogo, não resisti e disse: ‘Por favor senhor, esse é o meu lugar’. Foi aquele silêncio, todo mundo me olhando. Aí o Cassius Clay respondeu: ‘Perdão, senhor’. Se levantou e foi embora. Foi esse o dia em que eu botei Muhammad Ali para correr.
Aí depois, em 70, a preparação foi mais profissional e conquistamos o tri…
C.L. – É, foi como você falou. Uma preparação mais científica e coisa e tal. A Seleção ficou hospedada no México em uma vila chamada Guanajuato, que fica mais acima do nível do mar que a Cidade do México. Eu fui a Guanajuato, um ano antes, para ver como era a estrutura, reservar vagas no hotel para o pessoal do jornal e tal. Guanajuato não tem nada, a não ser uma dúzia de casas e um hotel maravilhoso, que era um mosteiro transformado em hotel. E lá só havia uma linha de telex. A outra linha mais próxima ficava em outra cidade, a 20 quilômetros de distância. Pois bem, aluguei a linha de telex um ano antes, para que fosse usada exclusivamente pelo pessoal do Jornal do Brasil. O aparelho ficava no saguão do hotel, e nós íamos lá para escrever nossas matérias e enviá-las para o Brasil. Os outros repórteres, dos outros jornais passavam pela gente e nós provocávamos: ‘Tá indo aonde, rapaz’? Aí eles ficavam nervosos e soltavam um palavrão dizendo: ‘Vou passar telex lá longe’. Essa foi a grande Copa do Pelé. Nessa Copa o time não jogou para ele. Ele (Pelé) jogava para o time.
Mas antes da Copa, o João Saldanha que era o técnico nas Eliminatórias, desconfiava da capacidade do Pelé…
C.L. – Vou contar uma coisa. No dia em que o Saldanha pediu demissão, estávamos eu e minha ex-mulher almoçando em um restaurante, quando ele chegou com a mulher, o Walter Clark, da TV Globo, e o Armando Nogueira. Eles sentaram à nossa mesa, e o Saldanha começou: ‘O Pelé está cego e o Tostão não tem nada na vista. É sacanagem desse moleque’. Bom, o Pelé está enxergando bem até hoje, e o Tostão quase perdeu uma vista.
Não há uma história que o Saldanha deixou o cargo porque comprou uma briga com o presidente da República, o General Médici, pela escalação do Dario, do Atlético Mineiro?
C.L. – Não, isso é lenda. Ele foi demitido porque insistiu nessa história que eu falei para você. Ele (Saldanha) estava cometendo loucura em cima de loucura.
E a Copa de 98?
C.L. – Estive nela como convidado da CBF. Isso dois anos antes de eu ir trabalhar como assessor de imprensa da Seleção. Em 98 era um bando de convidados do Ricardo (Teixeira), e eu era um deles. A CBF dava a passagem. Só a alimentação e a hospedagem eram por conta própria.
Então pôde acompanhar de perto o drama do Ronaldo?
C.L. – Acompanhei da mesma forma como todos que estavam lá, fora do ambiente da Seleção, acompanharam. Essa era a Copa mais fácil para o Brasil ganhar. Mas aí aconteceu aquela lambança com o Ronaldo. Eu tenho uma teoria: acho que ele (Ronaldo) estava com muita responsabilidade. Era o Ronaldo que tinha que decidir, o Ronaldo que ia levar o Brasil nas costas, e tal. Muito novo, não soube agüentar a pressão e teve aquele piripaque às vésperas do jogo. A coisa foi tão escondida que nenhum jornalista, e nessa época já eram 200 jornalistas brasileiros, viu a ambulância entrar na concentração do Brasil e levar o Ronaldo para uma clínica de Paris. Duzentos jornalistas e ninguém viu.
E como lhe chegou o convite para ser assessor da Seleção Brasileira?
C.L. – Depois da Copa de 98, quando voltei para o Brasil, eu já trabalhava aqui na Caminhos Aéreos. O Ricardo Teixeira me disse: ‘Lemos, você vai ser assessor de imprensa full time da Seleção Brasileira’.
Quando assumiu o cargo, em 2000, o técnico era o Wanderley Luxemburgo e foi um período muito conturbado na CBF, não?
C.L. – O Wanderley é o treinador que mais entende de futebol no Brasil E é também uma das pessoas mais vaidosas que eu conheço. Vê futebol como ninguém, mas é muito vaidoso. Sobre futebol ele não escuta ninguém. A saída dele da Seleção foi conturbada por causa da amante que resolveu fazer aquele escândalo. Ela inventou essa história que o Wanderley vendia jogador, e que ele era ‘gato’. Mas 60% dos jogadores brasileiros são ‘gatos’. O Wanderley na verdade era um ‘bode expiatório’. Aí entrou o Leão, que ficou pouco tempo. E eu vou te dizer porque ele ficou pouco tempo.
Por quê?
C.L. – Porque o Leão foi apenas um ‘tampão’, enquanto o Ricardo Teixeira tentava convencer o Felipão a aceitar o cargo de técnico. A Nike sabia disso. Tanto que ela não fez contrato com ele.
Essa situação não incomodava o Leão?
C.L. – Óbvio que sim. Depois de um jogo na Copa das Confederações, no Japão, o Leão, no meio de uma entrevista coletiva, virou para a intérprete japonesa e pediu um outro tênis porque o dele estava fazendo bolha no pé. Ele estava usando Nike. A intérprete apareceu depois com uma caixa de Adidas, no número dele. Foi armado. O Leão aí calça o tênis Adidas. A imprensa foi em cima e fotografou o pé dele, de Adidas. Claro, ele mexeu com a Nike, e mexeu com o Ricardo Teixeira também. Não teve saída e o Leão foi demitido no aeroporto, quando chegava ao Brasil.
Mas antes ainda do Leão o técnico chegou a ser o Candinho…
C.L. – E o Candinho quase ficou de vez. Houve um movimento, liderado pelo Marco Moura Teixeira, tio do Ricardo, e que era administrador da CBF, para que o Candinho ficasse de vez como técnico. Isso foi depois daquele jogo contra a Venezuela (o Brasil venceu por 5 x 0), em Maracaibo. Nós entramos no avião de volta para o Brasil com a certeza que o Candinho seria efetivado como técnico. Mas o Candinho não quis, por lealdade ao Wanderley.
E como era trabalhar no meio dessa turbulência?
C.L. – Muito difícil, até porque nessa época, como é até hoje, era uma multidão de jornalistas brasileiros e estrangeiros. Você tem idéia de quantos jornalistas eu credenciei para aquele jogo amistoso entre Brasil e Argentina, em Porto Alegre? Mil e duzentos e cinqüenta jornalistas.
Hoje o trabalho do assessor é mais complicado, visto que vocês têm que resguardar a imagem dos jogadores?
C.L. – Tem. Porque o técnico vira para você e diz: ‘Hoje eu não quero falar’. E 1250 jornalistas estão esperando que ele fale. E é muito chato quando você é obrigado a dizer que o ‘técnico não está disposto a falar’, ou dizer que ‘não tem entrevista coletiva marcada’. Essas coisas…
Alguns jogadores dão mais trabalho?
C.L. – Esse menino, o Kaká. Fala pra burro. Às vezes já estava todo mundo no ônibus e ele lá falando. Era preciso dizer a ele que não se desgastasse tanto. Porque os jogadores mais novos acham que se não falarem, a imprensa vai cair de pau em cima deles. Então, eu explicava que a imprensa ia criticá-los quando tivesse que criticá-los, independente de atenderem ou não a imprensa. Vê se o Rivaldo, o Romário, falam à toa?
E naqueles momentos de maior pressão sobre o técnico, como a coisa funciona?
C.L. – O pior trabalho do mundo é o de técnico da Seleção Brasileira. Só perde para o de presidente dos Estados Unidos, em caso de guerra. Porque, na normalidade, a pressão sobre o técnico da Seleção é maior. Vivemos em um país onde 150 milhões de pessoas acham que entendem de futebol. Os jornalistas, então, acham que entendem mais ainda. É uma pressão que acaba recaindo sobre a gente.