‘Nos habituamos tanto a nos disfarçar para os outros que nos disfarçamos de nós mesmos.’ (La Rochefoucauld)
‘O mesmo museu tinha uma seção em memória do Massacre Armênio (naturalmente, disse ela, alguns turistas vinham esperando ver remanescências do massacre turco dos armênios, e era sempre um choque descobrir que nesse museu a história era contada de forma diferente)’. (O narrador, in Neve, de Orhan Pamuk)
‘Quando um não quer, dois não brigam’ é o provérbio, bastante conhecido, lembrado por Eduardo Guimarães em seu artigo publicado no dia 14. O artigo trata, basicamente, de dois pontos. Por um lado, se esforça em pedir que serenem os ânimos que se exaltaram nos últimos tempos: primeiro, vários articulistas no OI – entre eles, Alberto Dines e Mauro Malin, principalmente – escreveram sobre os escândalos de corrupção nos últimos anos; isso provocou diversas respostas exasperadas, que, por sua vez, teriam causado reações igualmente exaltadas daqueles primeiros. Guimarães assinala que houve extrapolações, com injúrias pessoais, e as rejeita, pedindo educação e respeito nos debates. Por outro lado, procura apontar o que considera equívocos num artigo de Mauro Malin, sublinhando, logo no início, que este respeita os leitores.
O autor sempre reitera o que aparece como o desígnio do artigo: o comedimento dos ânimos, pedindo que as pessoas debatam de forma ponderada, evitando exaltações e hostilidades que não são compatíveis com debates civilizados.
Cada uma das duas partes do artigo de Guimarães é exemplarmente razoável (no sentido de terem razoabilidade, não de serem medianas) quando consideradas isoladamente. Na primeira parte, é nobre o desígnio do artigo apresentado pelo autor: pedir que os debates ocorram de forma educada, ponderada, sem injúrias pessoais. Na segunda parte, ele oferece um exemplo: procura criticar os argumentos de Malin, apontando o que, no seu entender, são os equívocos do articulista. Procura contra-argumentar, evita injúrias, busca, inegavelmente, desenvolver uma forma respeitosa com o artigo que critica, assim como dissera que Malin tinha sido respeitoso com seus leitores.
Os excessos
A questão é que as duas partes não são isoladas. Não é casual que várias vezes o artigo de Guimarães posterga o desenvolvimento da primeira parte para assinalar os ‘equívocos’ de Malin, e só no final ele indica suas respostas rápidas àqueles equívocos. A estratégia discursiva funde as duas partes: ao tratar do desígnio inicial, o artigo mostra ansiedade em assinalar os erros de Malin. Considerando assim, aparece evidente: ao apontar o que ele considera os equívocos cometidos por Malin, Guimarães trata – inadvertidamente ou não (essa distinção não é relevante aqui) – esses e outros ‘equívocos’, de Dines e de outros articulistas, como a causa das manifestações intolerantes que esses articulistas e seus textos sofrem.
Guimarães condena os excessos, as extrapolações ofensivas contidas em muitos comentários, mas seu artigo mais do que sugere que esses comentários imponderados, injuriosos, foram, afinal, decorrentes dos ‘equívocos’ daqueles articulistas. A idéia que aparece subjacente, ainda que não formulada abertamente, é que se não houvesse os equívocos, não ocorreriam os excessos. Evitem-se os equívocos e as reações histriônicas contrárias não ocorrerão mais, é o que se depreende do artigo.
Se no início, ao invocar o serenamento dos ânimos, a ponderação e o respeito nos debates, o artigo parecia ele mesmo pleno de razoabilidade em vez da intransigência e dos excessos que são condenados, no final fica a impressão de que ele não atingiu a questão principal: o comportamento intolerante. Seu alvo central terminou sendo os equívocos de opinião (tomou os argumentos de Malin como exemplo de seu alvo). Teve o mérito de não tratá-los ostensivamente como delitos de opinião, mas, no fim, esses equívocos aparecem como os responsáveis pela reação injuriosa dos comentários contrários. Esse procedimento abre brecha para que os assim considerados equívocos sejam imputados como delitos de opinião.
Ao desaprovar os excessos dos comentários intolerantes, o artigo de Guimarães enfatiza justamente os excessos, negligenciando assim os caracteres intolerantes contidos nos comentários. O artigo sugere que os excessos são conseqüência dos eventuais equívocos de opinião; diferentemente disso, na verdade, os excessos são decorrentes da intolerância dos que cometem os chamados excessos. Num outro artigo meu [‘Liberdade de opinião e seus adversários‘], procurei apontar a intolerância contida em muitos comentários feitos numa situação similar a essa; Guimarães, por sua vez, preferiu ressaltar o que ele considera equívocos de opinião, deixando de lado a intolerância dos comentários (não observa a intolerância desses comentários, apenas seus excessos). Seu artigo rejeita os excessos, mas não desaprova a intolerância.
A responsabilidade
Então, dizer nesse caso que ‘quando um não quer, dois não brigam’ – apontando os ‘equívocos’ de opinião e ressaltando os excessos contrários, porém negligenciando a intolerância – é como considerar que, se Salman Rusdhie não quisesse, não teria havido a fatwa: penaliza-se o romancista por fazer literatura, imputa-se-lhe responsabilidade por ele ter que passar a viver escondido, culpabiliza-o pelos eventuais assassinatos de tradutores e editores de seu livro.
Segundo essa lógica de granito, condenar à morte o romancista, os editores e os tradutores do livro pode ser considerado um excesso que pode ser deplorado, mas a culpa por ocorrer o excesso é do romancista. Se foi declarada a fatwa, é porque Rusdhie escreveu o romance – dito assim, muitos podem achar até razoável, porque seria uma verdade factual, cronológica e positivista –; desta maneira, basta uma torção no sentido e passa-se a considerar que a ocorrência da fatwa é culpa de Rusdhie.
Similarmente, é como dizer que há um excesso em processar Orhan Pamuk por falar, em romance, sobre ‘o massacre turco de armênios’ no início do século 20, mas considerar também que a responsabilidade por existir o excesso seria do escritor: se Pamuk (um) não quisesse, ele não seria processado (não existiria briga). Rejeitam-se, até deploram-se, os excessos cometidos, mas não se aponta a intolerância; antes, culpabiliza-se a liberdade de expressão. Assim, na lógica de granito, Rusdhie, Pamuk e todos que são perseguidos pelos intolerantes são quem provocam os excessos de intolerância. Ainda: é como dizer que o caráter absurdo dos processos na Alemanha hitlerista e na sociedade stalinista fosse decorrência apenas de excessos, não da intolerância que caracteriza a lógica totalitária. Como se os excessos excedessem a lógica totalitária. No entanto, não há excessos na lógica totalitária que a ultrapassem.
As diferenças
Não cabe aqui uma discussão minuciosa sobre a perseguição e a sentença de morte a que foi exposto Salman Rusdhie – o apelo, referente à execução do escritor, lançado a todos os defensores da fé, por quaisquer meios, em qualquer lugar, sem considerar o decorrer do tempo –, mas algumas observações são pertinentes. Já foi apontado que o imame que lançou a fatwa apenas aproveitou a oportunidade para se contrapôr e se superpôr aos sunitas, demonstrando mais intransigência do que esses: seu alvo sendo o conflito religioso interno, não haveria preocupação efetiva com o livro de Rusdhie. Na fatwa, Rusdhie foi apresentado como um herético, autor de uma blasfêmia contida no livro, mas essa acusação era falsa: era bem conhecido que Rusdhie nunca tinha partilhado da fé, de maneira que era errado tratar o livro como prova de apostasia.
É importante lembrar que, no Ocidente, algumas pessoas (sobretudo autoridades religiosas de diferentes confissões) demonstraram repúdio à condenação, mas aproveitaram a oportunidade para criticar uma liberdade de opinião que não conhece limites: assim, criticaram o escritor – e também a liberdade de opinião. No entanto, como já foi apontado alhures, Rusdhie não entrou numa igreja e insultou os crentes – tão somente escreveu um livro para quem quisesse lê-lo. Tomaram o livro como uma manifestação de opinião, considerada má. A fatwa é vista como um excesso que deve ser repudiado, mas a liberdade de opinião é questionada. Aparece aí a lógica de granito: o dogmatismo dessas pessoas se aproveitou do dogmatismo da fatwa declarada contra Rusdhie.
A melhor resposta foi dada pelo próprio Rusdhie em artigo publicado em fevereiro de 1990: em vez de defender sua pessoa, ele corajosamente trata da questão que entrelaça literatura, modernidade e liberdade de expressão. Rusdhie assinala que nunca foi muçulmano, mas, pelo contrário, sempre viveu uma vida de homem laico, pluralista e eclético; portanto é incongruente tratá-lo como apóstata. No entanto, ele não é indiferente à religião de parcela grande da população do país onde nasceu e cresceu. Rusdhie diz que, longe de atacar a fé dos muçulmanos, se sente próximo da sociedade muçulmana, desde que ela não se tranque em certezas fixas – de granito, poder-se-ia acrescentar –, mas se permite questionar (neste sentido, Rusdhie lembra que as sociedades muçulmanas mudaram suas leis e seus costumes ao longo dos séculos). Rusdhie observa que não é intolerante nem indiferente: sua literatura explora a questão da revelação e da fé. Sem a liberdade de desafiar, de ofuscar, de provocar, de questionar as ortodoxias, aponta ele, a liberdade não existe: é preciso reconhecer a diferença de posições.
Ação e reação
Assim, o artigo de Rusdhie deixa entrever a idéia de que não é a liberdade no espaço público que serve à liberdade individual, mas a liberdade de expressão que é importante para se constituir um espaço público aberto, tolerante às diferenças e às dúvidas (estes dois parágrafos, é preciso ressaltar, se beneficiaram diretamente das formulações de um artigo de Claude Lefort a propósito de Rusdhie).
É certo que as situações mencionadas acima não são idênticas e não se deve esquecer suas diferenças intrínsecas. Ser processado judicialmente na Turquia laica, como ocorre com o ganhador do Prêmio Nobel de Literatura deste ano, não é o mesmo que ter uma fatwa declarando sua execução, e os dois casos não são a mesma coisa que sofrer um julgamento numa sociedade totalitária. Há diferenças também entre os casos na Alemanha hitlerista e no regime soviético: nos julgamentos nazistas, o réu já estava previamente condenado antes de se começar o julgamento, que era apenas um teatro deplorável (repleto de canastrices, como é possível ver em documentário que mostra a atuação histérica e estressada de um juiz nazista), mas o réu não era induzido a se declarar culpado de traição e a pedir sua própria condenação, como costumava ocorrer nos julgamentos stalinistas.
Similarmente, ao rejeitar os excessos, o artigo de Guimarães difere muito daqueles que sequer vêem excessos e nada vêem de errado no histrionismo intolerante. Por outro lado, a ênfase nos excessos negligencia a intolerância. Ao ressaltar os chamados equívocos de opinião, esses são tratados como a origem das reações que se excederam na falta de educação. No entanto, nem é adequado usar o termo ‘reação’, como se fossem respostas legítimas (ainda que inadequadas quanto ao tom excessivo) aos equívocos de opinião, esses, sim, as ações que teriam provocado as reações. O exemplo, feito por Guimarães, de criticar ponderadamente Malin, extravasa no artigo e ultrapassa o propósito de ser um exemplo: se fosse apenas um exemplo de crítica ponderada e civilizada, não haveria a ânsia desajeitada, demonstrada no artigo, em anunciar os ‘equívocos’ de Malin no meio do desenvolvimento do desígnio, não ocorreria a alta ansiedade que resulta na fusão do desígnio e da crítica-exemplo.
Os limites
Em comentário posterior, Guimarães reclama sua tristeza pela pouca adesão manifesta ao desígnio enunciado em seu artigo. Não há motivo para reclamação por isso: ninguém fez reparo ao desígnio em si, ausência de reparos que é relevante – no entanto, talvez seja significativo que ele celebre a alegria pelas adesões, proteste decepção pela falta de mais adesões, mas não observe a falta de reparos ao desígnio em si. Tudo indica que ninguém discordará do desígnio enunciado. Talvez alguns, ou muitos, que não manifestaram adesão completa ao artigo tenham, de alguma maneira, percebido uma inconsistência entre o desígnio em si e a permissividade com a intolerância.
A preocupação direta de Salman Rusdhie é referente ao perigo imenso que há nos dogmatismos contidos na forma de ortodoxia religiosa. Essa preocupação pode – e deve – ser igualmente estendida quanto aos perigos em outras modalidades de dogmatismos, contidos em outros tipos de ortodoxias.
Pode parecer banal, mas é sempre necessário lembrar que a tolerância tem seu limite na agressividade intolerante do outro. Essa proposição oferece a parte substancial que é negligenciada pelo provérbio que movimenta e encerra o artigo de Guimarães. Mais relevante do que a vontade de brigar ou não, a questão principal, e mais séria, é a referente aos limites da intolerância.
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Historiador e doutor em Filosofia pela FFLCH-USP, Campinas, SP