Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Erudito sim, indecifrável não

A imprensa muda, as tecnologias avançam, mas se tem uma característica que não desaparece da prática do jornalismo cultural é o hábito de escrever textos indecifráveis sobre o que alguns chamam de produtos e pessoas do universo da cultura erudita. Mas antes de falar deste tema, é preciso deixar claro que se trata de uma grande bobagem esta separação – muito em voga no passado – entre cultura popular, cultura erudita e cultura de massa. Estas fronteiras não existem.

Tome, por exemplo, um filme como Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha. O diretor utiliza de trilha musical de Heitor Villa Lobos, seus conceitos de direção de fotografia e roteiro exigem um conhecimento estético sobre cinema. Portanto, filme erudito. Mas Glauber fala das mazelas do povo brasileiro e quis fazer um filme do povo para o povo. Portanto, filme popular. E, no entanto, trata-se de um longa exibido em vários cinemas, TVs e distribuído em DVDs. Cultura de massa. Tudo num só produto cultural.

Mas porque é preciso ler sobre filmes como esses, de filósofos, obras literárias, efemérides, discos, peças teatrais ou exposições como se estivéssemos lendo sânscrito? Porque propostas culturais mais sofisticadas precisam ser transpostas, nas páginas e blogs jornalísticos, sem clareza, coesão e coerência, mandamentos máximos do jornalismo como um todo?

Não se está dizendo, aqui, que é preciso escrever de forma rasa e simplória. Textos acessíveis não são sinônimos de superficialidade. O maior mal que um texto indecifrável causa é distanciar pessoas com pensamentos fabulosos e seus produtos do grande público. É colocar a tal “cultura erudita” num pedestal patético, pretensamente atingível por poucos, os decifradores de textos rebuscados. Não há maior desserviço do que isso, especialmente quando vem do jornalismo cultural, cuja missão, sempre, é fazer ponte entre a produção de arte e entretenimento e o público.

Isso não quer dizer que os textos do jornalismo cultural devam ser professorais. Longe disso, ainda que sem preconceito algum. Mas a máxima jornalística – “clareza, coesão e coerência” – deve ser sempre respeitada. Estilo jornalístico não pode ser confundido com rebuscamento intelectualóide. Um dos maiores prazeres que um leitor de jornalismo cultural tem é adquirir conhecimento sobre algo novo. É entender as ideias e intenções de um artista para, antes ou depois, visitar sua exposição. É compreender porque tal diretor possui aquele estilo de filmagem. Ou entender quais foram as grandes contribuições de ideias de alguns filósofos, sociólogos e escritores.

Cult_208 hannah divulgacaoCadernos e revistas culturais já possuem um número reduzido de leitores, pela sua natureza de falar de segmentos específicos da produção cultural. Mas escrever de forma chata, complexa, é trabalhar contra o próprio propósito – financeiro e cultural – que estas publicações possuem de atingir um público cada vez maior.

Isso remete ao velho embate entre jornalistas e especialistas de outras áreas, uma discussão tão antiga quanto a prática do jornalismo no mundo. A quem deve ser a missão de fazer jornalismo: do jornalista ou daquele que entende melhor do assunto em questão? Quem deve escrever um texto sobre um filósofo: um jornalista ou um filósofo especialista no mesmo?

A resposta é: tanto faz. Desde que tal filósofo, sociólogo, advogado ou poeta consiga construir, em seu texto, uma ponte entre a obra e seu leitor. Mas é para isso que, em tese, os jornalistas passam quatro anos no bacharelado e por isso tendo a defender a profissão. Não como uma ingênua proteção de mercado, mas como uma profissão que domina instrumentos para decifrar o mundo para seus leitores.

E isso não vale apenas para o jornalismo cultural. Como não especialista de outras áreas, valorizo jornalistas econômicos que me façam entender porque o novo pacote do governo é ruim, jornalistas políticos que decifram o emaranhado de decisões e reviravoltas de prisões e delações premiadas que dominam nosso cotidiano há anos. Jornalistas de saúde e ciência que saibam usar os argumentos e palavras certas para nos aproximar dos avanços científicos e da escuridão do universo ao redor.

Textos culturais não precisam ser longos e cheios de regras como uma tese de doutorado. Tampouco precisam recorrer a piadas e adjetivações fáceis para atrair muitos leitores. Nunca me esqueço de um texto do amigo jornalista Luiz Zanin Oricchio sobre um documentário sobre Rita Cadillac, personagem notoriamente popular. O texto era claro e coerente e ergueu muitas pontes sobre estilos documentais, a importância do arco do personagem etc. Sem precisar recorrer a um rebuscamento que protegesse o crítico de um produto pretensamente popularesco.

Há felizes exceções entre cadernos e revistas culturais. Destaque para um belíssimo ensaio que Claudia Perrone Moises escreveu para a Revista Cult, tempos atrás, sobre a importância do pensamento de Hanna Arendt na contemporaneidade. O ser humano é um bicho movido a curiosidade e conhecimento. Acessar a contribuição desta filósofa alemã num texto rico em conteúdo, mas acessível na forma, é um prazer que não se perde nunca. Mas, infelizmente, pontes jornalísticas bem construídas como essas ainda são exceções.

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Franthiesco Ballerini é jornalista, autor do livro ‘Jornalismo Cultural no Século 21’ – www.franthiescoballerini.net