O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (01/11) pela TV Brasil discutiu como a mídia pode contribuir para resgatar a imagem de um importante segmento da sociedade: o terceiro setor. A onda de denúncias envolvendo organizações não governamentais (ONGs) ligadas ao Ministério do Esporte colocou o trabalho destas entidades filantrópicas na berlinda. Alternativas como a criação de um Marco Legal, maior fiscalização do trabalho das ONGs e independência financeira das instituições em relação aos governos foram os principais pontos tratados no programa.
De acordo com o policial militar João Dias Ferreira, desde a gestão do ex-ministro Agnelo Queiroz, recursos públicos são desviados do governo através de ONGs de fachada. O policial, que em 2010 foi preso na Operação Shaolin, da Polícia Federal (PF), garante que uma “central de propina” instalada no Ministério arrecadava recursos para o PCdoB, que comanda a pasta desde 2003. Após a grande repercussão do escândalo, o ministro Orlando Silva perdeu o cargo.
Por conta das denúncias, a presidente Dilma Rousseff endureceu as regras para novos repasses e suspendeu por 30 dias os pagamentos de recursos federais a convênios com ONGs. Neste período, todos os atos assinados serão revistos e será necessário um parecer técnico para manter os convênios. O novo titular da pasta, o ministro Aldo Rebelo (PCdoB-SP), anunciou que o governo federal deixará de assinar convênios com ONGs para firmar os contratos com prefeituras. O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (01/11) pela TV Brasil discutiu o impacto negativo deste escândalo para o terceiro setor no Brasil, que tem mais de 350 mil ONGs registradas.
Para discutir este tema, Alberto Dines recebeu no estúdio do Rio de Janeiro a economista Ana Toni, presidente do conselho da ONG Greenpeace Internacional. Ana representou a Fundação Ford no Brasil de 2003 até julho de 2011 e coordenava o programa de Governo e Sociedade Civil, que atuava nos mecanismos de participação democrática e redução das desigualdades no Brasil. Em São Paulo, o programa contou com a presença de Luiz Carlos Merege, presidente do Instituto de Administração para o Terceiro Setor (IATS). Economista, Merege é doutor pela Maxwell School of Citizenship and Public Affairs, da Universidade de Syracuse, de Nova York. Roberto Maltchik, repórter da editoria de País deO Globo, participou no estúdio de Brasília. Maltchik cobriu três eleições presidenciais, diversas crises políticas e acompanha o escândalo das ONGs ligadas ao Ministério do Esporte.
Terceiro setor no pós-guerra
Em editorial, Dines explicou que o conceito de terceiro setor se desenvolveu após a Segunda Guerra Mundial, quando organizações governamentais e não-governamentais dividiram a tarefa de reconstrução dos países. Com o tempo, a sociedade civil e a cidadania organizada também passaram a integrar o terceiro setor. “ONG é coisa séria. Muitos jornais comunitários americanos estão conseguindo sobreviver porque se transformaram em entidades não lucrativas, autênticas ONGs. Este Observatório da Imprensa, criado há mais de 15 anos, é uma ONG autêntica. E mesmo que não fosse, teria a obrigação de preservar uma das criações mais engenhosas e harmoniosas da sociedade contemporânea”, destacou.
A reportagem exibida antes do debate no estúdio entrevistou diversos gestores que atuam em ONGs. Rodrigo Baggio, presidente do Comitê para Democratização da Informática (CDI), sublinhou que, historicamente, o papel das ONGs no Brasil é fundamental para a construção da democracia. “O que nós estamos vendo hoje é um processo que sempre aconteceu em diversos governos brasileiros e mundiais: um grupo pequeno de políticos corruptos, com o objetivo de desviar recursos para fins próprios, se utiliza naturalmente e tradicionalmente de empresas laranjas”, disse. O representante do CDI comentou que é preciso impedir que empresários e pessoas mal-intencionadas montem ONGs para praticar atos corruptos.
“Como nós podemos combater esse desafio? Aprovando o Marco Legal das ONGs, que faz com que as ONGs possam ser fiscalizadas, auditadas, certificadas. Isso é o mais importante. Nós temos que separar o joio do trigo. Nós temos que fazer a população perceber que ser um empreendedor social, que trabalhar no campo das ONGs, é um privilégio. É uma forma de a gente se realizar e ajudar a construir um mundo melhor”, destacou Baggio. A crise econômica mundial, na avaliação do presidente do CDI, gerou um forte impacto no investimento do capital privado no terceiro setor. Com isto, as ONGs passaram a ter que ser cada vez mais eficientes e trabalhar com planejamento, estratégias e indicadores de resultados.
Novas ferramentas de controle
Leriana Figueiredo, representante do Instituto Reação, montado pelo atleta Flávio Canto para estimular a transformação social através do esporte, explicou que é um desafio manter-se atualizado sobre as normas dos convênios com os ministérios. Constantemente, novas portarias são publicadas e sistemas de transparência para prestações de conta entram em atividade. “Fala-se de ONG e se generaliza, como se todas as ONGs tivessem a mesma atitude ou como se todo mundo usasse o recurso de ser ONG para se envolver em algum tipo de atividade”, criticou. Para a representante do instituto, a repercussão deste escândalo acaba respingando nas ONGs que têm credibilidade para trabalhar junto ao governo.
Na avaliação de Heloísa Helena de Oliveira, administradora executiva da Abrinq,instituição sem fins lucrativos criada para mobilizar a sociedade para as questões da infância e a adolescência, o problema não é a fiscalização deficiente do trabalho das ONGs. A questão central é a falta de seriedade no trabalho de algumas organizações. “É preciso que se faça uma triagem mais séria na hora de se contratar uma organização para prestar algum tipo de serviço público”, alertou. Para Heloísa Helena, as notícias de corrupção acabam promovendo a idéia de que nenhuma organização é séria.
A administradora destacou que é possível uma instituição sobreviver sem recurso público, como é o caso da Abrinq. “Isto nos dá uma autonomia para assumir posicionamentos necessários no que diz respeito à defesa dos direitos da criança e do adolescente”, explicou. O programa também entrevistou Guti Fraga, idealizador do grupo Nós do Morro, criado para levar arte e cultura para moradores de comunidades carentes. Fraga contou que, dos 25 anos da organização, apenas os últimos 10 foram patrocinados. “Nós nunca tivemos patrocínios porque nunca nos abrimos para oportunismos. Eu acho que existem oportunismos políticos, existem vários tipos de oportunismos. Eu sempre brinco e falo que a gente nunca vendeu a alma para o diabo”.
Preconceito
No debate ao vivo, Dines perguntou a Ana Toni se a implementação de um Marco Regulatório poderia ser o ponto de partida para uma mudança na forma como as ONGs são vistas no Brasil e questionou qual esfera da sociedade deveria cobrar a sua aplicação. A representante do Greenpeace explicou que este tema está na pauta do governo há anos e continua na agenda: “Foi feita uma promessa pelo governo da presidente Dilma e pelo ministro [Gilberto Carvalho] de que vai se avançar no Marco Regulatório. Não é fácil. Os desafios são imensos”. Ana Toni defendeu que o conjunto de leis englobe não só ONGs, mas atividades filantrópicas em geral.
“Doar recursos no Brasil é muito difícil. Não tem muitos incentivos nem para empresas, nem para indivíduos. As legislações dos Estados Unidos e da Inglaterra dão muitos benefícios fiscais”, explicou a economista. É essencial, na avaliação de Ana Toni, que as ONGs não dependam tanto dos governos. As organizações deveriam complementar e não substituir o poder público em situações onde a atuação do Estado é deficiente.
Ela comentou ainda que a posição de criminalizar as organizações não governamentais é simplista porque não leva a uma discussão sobre o que se espera da sociedade civil. “É muito difícil levantar recursos privados individuais porque as pessoas têm medo de dar dinheiro para uma ONG e ela sumir com aquele dinheiro. Isso, 99% das vezes, não é verdade. Tem uma cultura de desconfiar da ONG que a gente têm que mudar no Brasil. É essencial que a gente mude para que se tenha um mosaico de recursos, para que não se dependa só de governo, só do setor privado ou só dos indivíduos. Uma ONG saudável é uma ONG que tem recursos financeiros de diversos atores”, explicou a representante do Greenpeace.
Esta pluralidade nos recursos destinados ao financiamento das organizações, na opinião de Ana, contribuiria para uma maior transparência do terceiro setor. “Para uma ONG de qualquer natureza, quanto mais pública ela for, melhor para ela. Tem que colocar no site quem está no conselho, a prestação de contas, que projetos está ou não fazendo, mostrar ao público a que veio”, exemplificou a economista, sublinhando que a legitimidade de uma instituição vem da causa que ela defende e do conhecimento sobre o setor onde atua.
Luiz Carlos Merege ponderou que a independência das instituições filantrópicas é fundamental. Para ele, novas ferramentas tecnológicas de controle dos recursos têm que ser adotadas para facilitar a fiscalização. “O que nós precisamos, além do Marco Legal, é que estas organizações tenham uma exigência por parte do poder público, principalmente do Ministério Público, de serem transparentes, de prestarem contas e que haja um instrumento para que isto seja feito e a população também possa acessar estas organizações”.
O presidente do IATS explicou que a grande maioria das organizações do terceiro setor no Brasil tem origem na base da sociedade, em comunidades. As ONGs se formaram a partir de uma indignação que se transformou em ações e mobilizou a população. “A partir de 1988, com a Constituição brasileira, todo cidadão ganhou, pela força da Constituição, o direito de constituir organizações da sociedade civil muito facilmente”, relembrou. O presidente do IATS destacou que os recentes escândalos noticiados pela imprensa envolvem organizações criadas “de cima para baixo”. São instituições que surgiram a partir da ação de políticos, dirigentes ou de setores corruptos do governo – e da facilidade jurídica para desviar recursos públicos.
Transparência como arma
“É necessário que as pessoas tenham consciência de que os recursos que movimentam este setor, na maioria, provêm de atividades de geração de renda própria”, disse Merege. O governo tem uma participação de cerca de 15% nos recursos. Esta conjuntura torna o cenário do terceiro setor brasileiro diferente da maioria dos outros países. Merege defendeu a transparência do segmento público que transfere recursos para o terceiro setor e ressaltou que estes escândalos mancham uma atividade que é fundamental para a sociedade.
Dines perguntou para Maltchik se é possível manter uma pauta positiva para as ONGs. O repórter comentou que o trabalho de instituições renomadas tem espaço garantido na mídia. No entanto, graves denúncias como as que envolvem ONGs de fachada e o PCdoB devem ser noticiadas com destaque. “O papel da imprensa é mostrar o trabalho bom do Greenpeace e de outras organizações, mas é fundamental também, de maneira paralela, mostrar se determinado partido está usando organizações não governamentais e queimando a imagem de organizações importantes com este tipo de mecanismo”, ponderou.
Para Maltchik, a chave para entender este esquema de desvio de recursos está na criação de ONGs destinadas a prestar serviços para o governo. “Se descobre que o presidente da ONG é filiado ao partido do ministro. Quando se percebe, aquele cidadão se filiou ao partido meses ou um ano antes de criar a ONG. Seis meses depois, a ONG faz um convênio com o governo federal. Quando se vê, a mesma ONG já está recebendo alguns milhões de reais do poder público para desenvolver atividades que nem mesmo ela sabe como realizar”, disse o jornalista. Estas organizações se intitulam como terceiro setor mas foram criadas para abastecer um ciclo que já estava montado.
Maltchik ressaltou que este problema ocorre em vários ministérios. Na avaliação do jornalista, no momento, é complicado que o governo fiscalize os convênios da forma adequada porque não dispõe de auditores em quantidade suficiente para atender a esta demanda no período que foi estabelecido. “Ou o governo regulamenta adequadamente a forma de controlar, de fiscalizar, até mesmo de repassar este dinheiro, ou esta dificuldade vai continuar”, alertou.
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ONG é coisa séria
Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 617, exibido em 01/11/2011
Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.
Os céticos dizem que o Brasil é capaz de desmoralizar qualquer boa iniciativa ou causa justa, o que evidentemente é uma grande injustiça. Mas os escândalos envolvendo a gestão passada do Ministério do Esporte enlamearam uma das instituições mais originais e mais criativas do mundo contemporâneo: as ONGs, organizações não-governamentais.
São os agentes mais visíveis do terceiro setor: o primeiro setor é constituído pelo aparelho governamental, o segundo setor é o setor privado composto por empresas, empresários e corporações empresariais. O terceiro setor atua na esfera pública usando sobretudo recursos privados, mas não exclusivamente. O conceito desenvolveu-se no pós-guerra, em seguida à maior catástrofe dos últimos 500 anos, quando a formidável tarefa de reconstrução precisou ser partilhada entre organizações governamentais e não-governamentais.
O conceito de terceiro setor ampliou-se, somando-se ao da sociedade civil e da cidadania organizada. As ONGs são ágeis como a iniciativa privada, têm compromissos públicos como os governos, mas não podem ser lucrativas. Seus funcionários são pagos, mas em algumas ONGs seus diretores são voluntários não remunerados.
As ONGs pegas em flagrante delito só recebiam recursos de governos e os repassavam para empresas-laranjas ou fantasmas. A pandemia da corrupção fez o resto: aproveitou-se da falta de fiscalização e assim criou-se o que se pode designar como mamata gigante.
ONG é coisa séria. Muitos jornais comunitários americanos estão conseguindo sobreviver porque se transformaram em entidades não lucrativas, autênticas ONGs. Este Observatório da Imprensa, criado há mais de 15 anos, é uma ONG autêntica. E mesmo que não fosse, teria a obrigação de preservar uma das criações mais engenhosas e harmoniosas da sociedade contemporânea.