Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Escândalos midiáticos no tempo e no espaço

É ainda reduzida a literatura sobre a importância dos escândalos na política contemporânea. Quando se fala em escândalos políticos alguns vêm logo à memória: o caso Watergate, que levou Richard Nixon a renunciar à presidência dos EUA; o envolvimento do presidente Bill Clinton com uma estagiária da Casa Branca que lhe causou um processo de impeachment e, no Brasil, o processo contra o presidente Fernando Collor que o levou à renúncia. E, claro, a crise política que estamos vivendo desde maio de 2005, que, inclusive, já mereceu um livro de dois jornalistas de O Globo com o título Memorial do escândalo (Gerson Camarotti e Bernardo de la Peña, Geração Editorial, 2005).

O que esses e outros escândalos têm em comum – e que raramente é lembrado – é que eles são ‘escândalos midiáticos’. John B. Thompson nos oferece uma interessante conceituação do que seja o escândalo midiático em livro publicado originalmente na Inglaterra em 2000 e que mereceu tradução brasileira, em 2002: O escândalo político.

Em primeiro lugar, trata-se de um fenômeno que tem a ver com a própria idéia do que constitui um ‘evento público’. Antes do desenvolvimento dos meios de comunicação modernos – jornais, revistas, rádio e televisão –, um ‘evento público’ implicava compartilhamento de um lugar (espaço) comum; co-presença; visão, audição, aparência visual, palavra falada; diálogo.

Depois do que hoje chamamos de mídia, um evento para ser ‘público’ não está limitado à partilha de um lugar comum. O ‘público’ pode estar distante no tempo e no espaço. Dessa forma, a mídia não só suplementa a forma tradicional de constituição do ‘público’, mas também a estende, transforma e substitui. O ‘público’ agora é midiatizado. Esta é uma das diferenças entre um escândalo localizado e um escândalo midiático.

Controle e dinâmica

Outros fatores são a consolidação da mídia de massa, a emergência do jornalismo como profissão e, sobretudo, do ethos profissional que deu origem ao jornalismo investigativo ‘em que a busca de atos ocultos se combina com as idéias que os jornalistas têm de uma responsabilidade moral de erradicar o mal e mostrar as enfermidades sociais’. A publicação de escândalos e comentários sobre eles tornou-se uma atividade que corresponde à imagem que os jornalistas têm de si mesmos. A revelação de segredos ocultos do poder é vista como uma forma de exercer sua missão de guardiães do interesse público (sic).

Escândalo midiático, portanto, é o evento que implica a revelação através da mídia de atividades previamente ocultadas e moralmente desonrosas, desencadeando uma seqüência de ocorrências posteriores. A sua apresentação e o seu comentário através/na mídia não são características secundárias ou acidentais. Ao contrário, elas são partes constitutivas deles. O controle e a dinâmica do processo se deslocam dos atores inicialmente envolvidos e passa para os jornalistas e para a mídia.

Muitas das mais importantes crises políticas contemporâneas – no Brasil e em outros países – têm como origem um escândalo midiático.

J. B. Thompson enumera pelo menos quatro razões que levariam a mídia a promover os escândalos midiáticos: lucros financeiros – ‘os escândalos vendem’; objetivos políticos; imagem que os jornalistas profissionais têm de si mesmos; competitividade no mercado e, claro, alguma combinação dessas razões.

Não sai em jornal

O que nos leva a retomar a conhecida conceituação de escândalo midiático de J. B. Thompson, no entanto, é uma das mais curiosas e persistentes contradições do jornalismo político brasileiro, que se repete nos dias em que vivemos: a ausência da reflexão crítica sobre seu próprio papel e o da mídia como atores na atual crise política.

Os principais analistas da grande mídia em suas colunas, comentários e livros continuam, apesar de todas as evidências em contrário, insistindo em se considerar como expressão da ‘opinião pública’ – e não só como seus formadores. No entanto, com raríssimas e esporádicas exceções, a ausência da reflexão crítica permanece.

Esse não é um fato novo. Por exemplo: um dos temas mais polêmicos do processo constituinte de 1987-88 foi o das comunicações. Tanto na subcomissão quanto na comissão que trataram do assunto não se chegou sequer a um relatório final. No entanto, como observou à época o jornalista e professor Hélio Doyle, essa é uma ‘polêmica que não sai em jornal nem na TV’.

Teorias conspiratórias

No auge da crise política em 2005, as notas oficiais do PT e as declarações da professora Marilena Chaui de que ‘a crise é (era) um produto da mídia’ não provocaram um debate sobre o papel da mídia na mídia. Ao contrário. Elas foram desqualificadas e tratadas apenas como uma tentativa militante de desviar a atenção dos atos de corrupção.

As seguidas manifestações de vários dos envolvidos na crise – por exemplo, deputados que sofreram (sofrem) processo de cassação – sobre os pressupostos e o comportamento muitas vezes ética e profissionalmente questionáveis de jornalistas e da mídia na cobertura da crise são sumariamente desqualificadas. E quando, eventualmente, alguma outra análise produzida fora da grande mídia levanta a questão e merece menção por parte de algum desses colunistas, é acusada de se basear em absurdas teorias conspiratórias.

Como compreender essa contradição? Certamente não é porque a elite dos colunistas/analistas brasileiros não seja formada por profissionais com acesso ao que escrevem seus colegas em outros países, ou à literatura acadêmica produzida no Brasil e no exterior. Nessa literatura, como se sabe, a mídia vem ocupando progressivamente uma posição de centralidade como ator no processo político.

As razões terão que ser dadas pelos próprios colunistas/analistas da grande mídia. Até que isso aconteça, vale registrar, uma vez mais, essa estranha contradição.

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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Mídia: Teoria e Política (Editora Fundação Perseu Abramo, 2ª ed., 2004)