O Conselho, a Mídia e Esopo
Aguardei algumas edições do Observatório para me manifestar sobre as reações ao projeto de lei criando o Conselho Federal de Jornalismo. Dois motivos me levaram a adiar este texto. O primeiro foi a cautela. Quem não vivencia o dia-a-dia de uma redação e/ou não participa de entidades representativas da categoria não deve, açodadamente, firmar juízo de valor sobre tema tão polêmico. O segundo foi a solidez dos argumentos de dois artigos escritos pelo jornalista Luiz Weis, demonstrando o quão falsa era a discussão.
Houve quem afirmasse que estaria em curso um processo autoritário que, buscando ‘fiscalizar o exercício da profissão de jornalista e da atividade de jornalismo’, objetivava ameaçar a liberdade de imprensa e o direito do cidadão à livre informação. Confrontamo-nos com uma constatação enganosa. Não se ameaça o que não existe. Quem quiser travar a boa luta deve ir à questão central: a estrutura oligopolizada e a propriedade cruzada dos meios de comunicação. Tangenciar esse ponto é se ater a falsas premissas. Não duvidamos que o projeto deva ser aperfeiçoado, mas demonizá-lo invocando um suposto viés autoritário a ameaçar o papel fiscalizador da imprensa numa sociedade democrática é ingenuidade ou má-fé.
E o motivo é tão óbvio quanto espantoso: a imprensa brasileira, em toda a sua história, nunca concebeu a política como espaço negociado de resolução de conflitos. Honrosas exceções, personificadas por profissionais que confrontaram regimes apoiados pelas próprias empresas em que trabalhavam, não devem embaçar nossa visão do campo jornalístico.
História conspiracionista
Como destacou o jornalista Ivson Alves, em texto notável, publicado no portal Comunique-se, ‘já está beirando o ridículo a insistência de alguns setores da imprensa de apresentar a instituição como mediadora válida entre governo e sociedade, sob o argumento de que numa democracia ela sempre exerceu este papel. É um argumento falso. O lugar da imprensa no processo político tem menos a ver com pluralismo democrático do que com dinheiro e predomínio político’.
Correlacionar imprensa com democracia não é um exercício possível. Requer engenho negar as evidências empíricas registradas na história republicana recente. Se observarmos os arranjos de toda natureza que marcaram a institucionalidade excludente da formação social brasileira, veremos onde o baronato da mídia assestou suas baterias.
Da trama política que culminou com o suicídio de Getúlio ao golpe militar que tal gesto adiou por 10 anos, a história da maioria dos meios de comunicação brasileiros se confunde com o conspiracionismo golpista. Durante o regime militar, ao preço de legitimar a ordem dos generais, as empresas jornalísticas maximizaram seus lucros e ampliaram alianças com o universo político conservador e setores empresariais que deram apoio logístico à deposição de um governo constitucionalmente eleito. Esgotado o ciclo autoritário, sabotaram, como destaquei em artigo publicado na edição 272 deste Observatório, a campanha das Diretas-Já. Nesse episódio, a exceção à regra foi o diário Folha de S. Paulo.
Sem romantismo
Historicamente, portanto, a promiscuidade político-empresarial se superpôs a qualquer código de ética ou manual de redação. É essa a ‘trajetória democrática’ ameaçada pelo Conselho Federal de Jornalismo? Por que os que gritam contra o suposto conluio entre a Fenaj e a Casa Civil da Presidência da República se calam ante a mordaça imposta por razões empresariais? O mercado guarda alguma afinidade eletiva com a democracia? O monopólio garante ao cidadão a livre informação? O famoso ‘diga-me com quem andas’ não deveria ser lembrado quando vemos que a grita contra o projeto une alguns notáveis jornalistas a entidades como a Aneer, Abert e SIP? Será que o clamor patronal significa uma inflexão ética do baronato?
É comovente ver dois destacados profissionais da emissora monopolista fazer profissão de fé como democratas. Na entrega de um prêmio concedido pelo Instituto Senna, os jornalistas William Bonner e Miriam Leitão prometeram, em nome de sua organização, lutar pela liberdade. Magnífico libelo contra as supostas ameaças que andariam a rondar o exercício da atividade jornalística. Pena que, ignorando o exemplo recente da mídia americana, não tenha sido precedido por um mea-culpa pelos atentados perpetrados por seus patrões.
Talvez o maior mérito dessa discussão seja o de repensar a prática jornalística sem idealizações românticas. Se não bastassem os procedimentos passados, a cobertura do referendo revogatório na Venezuela mostra que, para além de intenções anunciadas, a atualidade das fábulas de Esopo é inconteste. Há casos em que, independentemente da extensão da travessia, as desculpas do escorpião vêm tardiamente. Melhor estarmos mais atentos a sua natureza do que à nova retórica adotada.
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Professor-titular das Faculdades Integradas Hélio Alonso, Rio de Janeiro