Estamos no epicentro do vulcão das mutações. Isto é um fato. Todavia, algo de mais complexo sugere que recordemos a diferença já pontuada por Paul Virilio entre o conceito de ‘fato’ e ‘fatalidade’. Enquanto esta sinaliza o ‘irremediável’; aquele enseja reflexão e análise. O que, efetivamente, proponho para este artigo decorre de uma entrevista concedida pelo pesquisador austríaco Viktor Mayer-Schöenberger ao jornal Folha de S.Paulo (edição de 05/04/2010). Deixei que passasse algum tempo até para verificar se algum outro articulista viria a interessar-se pelo tema. Como tal não se deu, faço-o eu, agora.
Na primeira página, constava a seguinte ‘chamada’: ‘Pesquisador diz que esquecer é essencial na era da internet’. A ela, seguia-se conciso texto que remetia à pág. A18. Ali, em página inteira, havia o título: ‘Esquecer limpa a mente, ajuda a abstrair e a generalizar’. Logo após, breve matéria assinada pela jornalista Daniela Arrais e, em seguida, a entrevista. Aqui não é o fórum adequado para a discussão a respeito das declarações do pesquisador. Por outro lado, é o espaço perfeito para avaliar-se o tratamento jornalístico conferido ao teor da entrevista. Este é o ponto.
Na contramão do que os jornalistas fazem
A propósito do tema em questão, lembro-me de uma antiga canção de Caetano Veloso, ‘Os argonautas’. Nela, Caetano, dialogando com o poeta Fernando Pessoa, recuperava o dístico presente no pórtico da Escola de Sagres (‘Navegar é preciso / viver não é preciso’). Dando um salto no tempo, concluo que, na era dos ‘internautas’, diferentemente daquela dos ‘argonautas’, o dístico assume nova feição: ‘Navegar na rede é preciso / esquecer também é preciso’. Entre a distância dos dois tempos e modelos culturais, evidencia-se acentuada diferença de concepção quanto ao sentido de existir.
Enquanto, no lema de Sagres, bem como nos diferentes tempos de Fernando Pessoa e a época da canção de Caetano (1969), o ato querente de encontrar o desconhecido era para somar-se ao já sabido, na atual ‘era das redes’, o estado volitivo do indivíduo, paradoxalmente, deseja somar subtraindo, ou perder para ganhar. O problema não está nas idéias expostas pelo pesquisador. Ele tem pleno direito de externá-las e debatê-las. O problema, outrossim, se encontra na pretensa neutralidade do jornal, principalmente quanto ao que selecionou como destaque, a exemplo das duas citações já mencionadas. Por que, a despeito de, em grande parte, discordar do pesquisador, protejo-o e o mesmo não o faço em relação ao jornal?
É simples: o pesquisador pertence à esfera acadêmica; portanto, suas idéias devem ser cotejadas, no campo devido, por seus pares, igualmente qualificados e habilitados. O mesmo, porém, não se dá em relação ao jornal visto que este circula em ambiência pública, dirigindo-se aos mais diversificados segmentos. Ao dar destaque, sem nenhum contraponto crítico nem questionador, os jornalistas responsáveis pela matéria e edição referendaram tudo que, pelo pesquisador, foi exposto. O mínimo exigido, em nome da preservação do pensamento democrático, seria justapor à entrevista um texto que fosse de jornalista ou de outro teórico a fim de oferecer, ao leitor, possibilidades de um olhar pendular e relativizado. Assim não o foi. A pergunta, então, é: jornalistas também defendem o ‘esquecimento’ como virtude? Quero crer que não! O autêntico jornalista é, acima de tudo, um ‘historiador’ a narrar a sucessão dos dias. Como sucessão, o hoje depende do ontem como o amanhã está subordinado à cadeia temporal do hoje e do ontem. O jornalista costura como a agulha a perfurar o tecido, unindo um ponto a outro. Os jornalistas responsáveis não se deram conta (suponho) de que as afirmações do pesquisador estiveram, todo tempo, na contramão do que os próprios jornalistas realizam cotidianamente.
Tagarelice frenética e oca
O que ainda mais causa estarrecimento é o fato de o pesquisador representar, a exemplo de outro, Pierre Lévy, a defesa de interesses ligados à expansão (invasão) de ‘mídias eletrônicas’. Mesmo sob o risco da obviedade, vale lembrar que a matéria foi publicada em linguagem impressa, modalidade progressivamente ameaçada pela feroz concorrente linguagem audiovisual. Muito já escrevi sobre essa questão. Assim, pouparei os eventuais leitores contra a tentação das repetições. Acrescento apenas, como educador, que não é necessário um pesquisador austríaco aconselhar o apagamento de dados antigos.
Quem lida com a atual geração bem sabe que adolescentes e jovens já se comportam mentalmente com base no ‘esquecimento’, na incapacidade de estabelecer correlações, na inexistência de referências anteriores e assim por diante. As telas estão implodindo o thélos como as imagens estão barbarizando o vocabulário e a comunicação produtiva. Em seu lugar, prolifera o culto a uma tagarelice frenética, vazia de densidade e oca de intensidade. Trata-se de uma mutação? Sim, é um fato evidente. Será que permitiremos transformar um fato em fatalidade?
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Ensaísta, articulista, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da FACHA (RJ)