Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Estado, serviço público e interesse privado

As concessões do serviço público de rádio e televisão constituem uma das áreas de interface mais visível do Estado brasileiro com o amplo setor das comunicações.


A consolidação sistemática de normas legais e procedimentos burocráticos contraditórios e/ou desatualizados tornou possível que, ao longo dos anos, essas concessões se transformassem em locus privilegiado onde interesses do próprio Estado e interesses privados de pessoas ou grupos políticos, disfarçados de interesse público, fossem negociados, estabelecidos, reproduzidos e preservados.


Exemplo maior dessa interface é o que se convencionou chamar de coronelismo eletrônico, prática de barganha política que se mantém como uma das principais características da radiodifusão brasileira desde a metade do século passado.


Coronelismo e coronelismo eletrônico


O conceito de coronelismo tem sua origem no estudo clássico do jurista e professor Victor Nunes Leal sobre as práticas políticas no antigo Brasil rural – Coronelismo, Enxada e Voto – cuja primeira edição foi publicada pela Revista Forense, em 1949.


O status teórico do conceito tem sido, no entanto, objeto de aguda controvérsia nas ciências sociais e o seu derivado – coronelismo eletrônico – carece de reflexão conceitual, além de padecer freqüentemente de uma série de equívocos e imprecisões no campo da Comunicação. Apesar disso, acreditamos que o fenômeno nomeado como coronelismo eletrônico ainda guarda características e mantém traços comuns com o sistema de dominação e de relações políticas originalmente estudado por Nunes Leal na República Velha que justificam seu uso.


O coronelismo


Desde o Império até a República, a estrutura agrária concentradora da propriedade da terra possibilitou o exercício do controle político do município por lideranças locais através de um complicado sistema de compromissos e troca de favores com as províncias (estados) e a União. O coronel era o chefe político local e recebia essa designação como oficial da Guarda Nacional criada ainda no século 19.


A moeda de troca básica dos velhos coronéis era o controle do voto – o chamado ‘voto de cabresto’ – inicialmente aberto e depois, secreto. Como recompensa, eram eles que decidiam sobre a alocação dos recursos orçamentários estaduais e federais no município e faziam as indicações dos nomes que ocupariam os cargos de comando da máquina pública – juiz, delegado de polícia, coletor de impostos, agente dos Correios, professores do ensino público, dentre outros.


Como reafirmou Leal (1980)…




‘…o coronelismo era um aspecto local da dominação política, um aspecto local das lutas e dos entendimentos políticos, embora refletindo-se nos círculos mais amplos e contribuindo, por suas características, para dar uma tonalidade própria a toda a vida política do país’.


Esse coronelismo da República Velha encontra suas condições ideais de funcionamento num país de população majoritariamente rural, no contexto do poder central do Estado fortalecido, de municípios isolados e tutelados e da introdução de instituições representativas na política.


O coronelismo eletrônico


O coronelismo eletrônico, por outro lado, é um fenômeno do Brasil urbano da segunda metade do século 20, que sofre uma inflexão importante com a Constituição de 1988, mas persiste e se reinventa depois dela. É também resultado da adoção do modelo de curadoria (trusteeship model), isto é, da outorga pela União a empresas privadas da exploração dos serviços públicos de rádio e televisão e, sobretudo, das profundas alterações que ocorreram com a progressiva centralidade da mídia no processo político, a partir do regime militar (1964-1985).


Emissoras de rádio e televisão – espalhadas por todo o território brasileiro; mantidas, em boa parte pela publicidade oficial e articuladas com as redes nacionais dominantes – dão origem a um tipo de poder agora não mais coercitivo, mas criador de consensos políticos. São esses consensos que facilitam (mas não garantem) a eleição (e a reeleição) de representantes – em nível federal, deputados e senadores – que, por sua vez, permitem circularmente a permanência do coronelismo como sistema.


Ao controlar as concessões de rádio e televisão, o novo coronel promove a si mesmo e aos seus aliados, hostiliza e cerceia a expressão dos adversários políticos e é fator importante na construção da opinião pública – cujo apoio é disputado tanto no plano estadual como no federal.


No coronelismo eletrônico, portanto, a moeda de troca continua sendo o voto, como no velho coronelismo. Só que não mais com base na posse da terra, mas no controle da informação, vale dizer, na capacidade de influir na formação da opinião pública.


A recompensa da União aos coronéis eletrônicos é de certa forma antecipada pela outorga e, depois, pela renovação das concessões do serviço de radiodifusão que confere a eles poder na barganha dos recursos para os serviços públicos municipais, estaduais e federais.


Um feliz resumo das diferenças entre o coronelismo e o coronelismo eletrônico pode ser encontrado em trabalho de Costa e Brener, publicado em 1997. Dizem eles:




‘Se as raízes dos velhos coronéis remontam ao Império, os coronéis de agora emergiram principalmente a partir do regime militar. Os primeiros são expressão de um Brasil predominantemente rural, enquanto os novos coronéis são atores políticos de um país majoritariamente urbano. O coronel de hoje mantém práticas típicas do antigo coronel, como usar a sua influência junto ao governo para arranjar emprego para os apadrinhados ou levar obras e melhoramentos para as suas bases eleitorais, mas mudou muito a forma de fazer política. Se antes os métodos de cabala de votos se resumiam às instruções dadas aos cabos eleitorais e aos comícios, é inegável que a televisão [e o rádio] se tornaram um novo e decisivo cenário da batalha política estadual e municipal.’


Não será coincidência, portanto, constatar que as oligarquias dominantes em vários estados e regiões do país (sobretudo, no Nordeste), a partir das últimas décadas do século passado, têm em comum o vínculo com a mídia. Em especial, o vínculo com as emissoras de rádio e televisão comerciais e suas retransmissoras (RTVs), mas também com as emissoras educativas. Seus membros são detentores de mandatos nos diferentes níveis de representação no Executivo e no Legislativo, mas, sobretudo, são governadores, deputados federais ou senadores.


Os mais conhecidos exemplos são as oligarquias regionais identificadas por nomes como Barbalho, Sarney, Jereissati, Garibaldi, Collor de Mello, Franco, Alves, Magalhães, Martinez e Paulo Octávio, dentre outros.


Como garantir a manutenção do coronelismo?


O que se pretende aqui é apresentar uma pequena lista comentada de algumas normas e procedimentos regulatórios das concessões de radiodifusão no país que, historicamente, têm contribuído para a perpetuação da prevalência de interesses privados na execução de um serviço público.


Considerando que a TV aberta e o rádio comerciais estão, respectivamente, presentes em 91,4% e 88% dos domicílios brasileiros e que abocanham, juntos, 63,5% do faturamento publicitário bruto do país (cerca de 5,2 bilhões em 2007) [Grupo de Mídia (2007)], tratarei apenas das normas e procedimentos legais referentes à concessão desses serviços públicos, não incluindo, portanto, as concessões para os serviços de radiodifusão educativa e/ou comunitária.


** PRIMEIRO: existem normas legais diferentes para a concessão dos serviços de televisão aberta e de televisão paga ou por assinatura.


A TV aberta é considerada radiodifusão, regida por legislação específica (Lei 4.117/62). Já a TV paga é tratada como telecomunicações e é regida por normas que dependem da tecnologia utilizada: a televisão via cabo obedece a uma lei (Lei 8977/95); e as televisões via microondas (MMDS), via satélite (DTH) ou chamadas de ‘serviço especial’ (TVA) são reguladas por decreto (Decreto 2.196/97).


Essa assimetria regulatória tem, por óbvio, implicações legais e outras que chegam, até mesmo, a ser cômicas. Por exemplo: o mesmo telejornal (digamos, o Bom dia Brasil da Rede Globo) é legalmente considerado ‘radiodifusão’ quando transmitido por uma TV aberta e ‘telecomunicações’ quando retransmitido em canal de televisão a cabo (GloboNews da operadora NET).


** SEGUNDO: as emissoras de rádio e TV aberta são concessões de um serviço público outorgadas por contrato, pela União – com a participação do Congresso Nacional – por prazo determinado de 10 anos para as emissoras de rádio e de 15 anos para as de televisão.


A desmedida duração desses contratos tem contribuído, historicamente, para que as concessões sejam, na prática, transformadas e tratadas, por seus concessionários, como propriedade e não como concessão temporária.


** TERCEIRO: apesar das emissoras de rádio e TV aberta serem concessões de um serviço público, outorgadas sob determinadas condições, as regras consagradas no texto Constitucional tanto para (i) a renovação quanto para (ii) o cancelamento dessas concessões criam uma grave assimetria em relação aos demais contratos de prestação de serviços públicos porque favorecem claramente aos concessionários.




(i) A não renovação precisa ser votada no Congresso Nacional por dois quintos dos seus membros, em votação nominal (§ 2º do artigo 223).


Considerando o papel chave da TV para a visibilidade da atividade política e sua centralidade na disputa de poder, é improvável que um processo de não renovação chegue a ser votado no plenário do Congresso Nacional, sobretudo em votação nominal aberta. Menos provável ainda é que seja aprovado por dois quintos do total de deputados e senadores que ‘dependem’ da própria televisão para sua sobrevivência nas disputas eleitorais. Desde que a norma foi inserida na Constituição, em 1988, não há registro de qualquer processo de não renovação de concessão de radiodifusão que tenha sido sequer apresentado no Congresso Nacional.


Além disso, o Decreto 88.066, assinado pelo presidente-general João Batista Figueiredo, em 26 de janeiro de 1983, determina que se o concessionário do serviço requerer a renovação e não houver decisão dos órgãos competentes ‘até a data prevista para o término da concessão‘ (artigo 4º), a renovação será automaticamente deferida. Umas das conseqüências dessa norma é que há registro de emissoras de rádio e televisão que funcionam sem renovação formal por períodos iguais ou até mesmo superiores ao próprio prazo legal de concessão.


Registre-se a injustificável diferença de tratamento que o Ministério das Comunicações (MiniCom), a Anatel e a Polícia Federal praticam em relação a emissoras de rádio e televisão comerciais – que continuam a operar com suas concessões vencidas – e a emissoras de rádio comunitárias – que têm sido sistematicamente fechadas com a apreensão de equipamentos e a prisão de líderes comunitários, apesar de, muitas delas, possuírem pedidos de autorização para funcionamento tramitando no MiniCom, há anos, sem decisão final.




(ii) O cancelamento durante a vigência do contrato só pode ocorrer com decisão judicial (§ 4º do artigo 223).


O poder concedente, ao contrário do que ocorre em todas as outras concessões de um serviço público, não tem o poder de interromper os contratos de concessão quando julgar que houve descumprimento de normas que regem a prestação do serviço. É necessário que se abra um processo que será decidido não pelo poder concedente, mas pelo Judiciário.


Até recentemente não se tinha notícia de que houvesse sido aberto um único processo de cancelamento de concessão de radiodifusão durante a vigência do contrato. No entanto, em texto-resposta publicado em janeiro de 2008 no Observatório da Imprensa, o ministro das Comunicações, Hélio Costa, afirma:




‘Só no final do ano passado, foram encaminhadas pela primeira vez cerca de 20 processos de outorga para cassação pelo Judiciário, como mais uma vez reza a Constituição. Esse fato é inédito e histórico.’


** QUARTO: apesar de a Constituição definir claramente os princípios que devem orientar a produção e a programação das emissoras de rádio e TV aberta, eles não são utilizados como critério para a outorga, cancelamento e/ou renovação das concessões.


De fato, o Artigo 221 reza que esses princípios são: preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; promoção da cultura nacional e regional e estímulo a produção independente que objetive sua divulgação; regionalização da produção cultural, artística e jornalística; e respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.


** QUINTO: apesar de a Constituição estabelecer que ‘os meios de comunicação não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio‘ (parágrafo 5º do Artigo 220) e mandar observar ‘o princípio da complementaridade entre os sistemas privado, público e estatal‘ (Artigo 223) para a outorga e renovação de concessões de radiodifusão, essas normas não são utilizadas como critério.


Na verdade, desde os decretos que iniciaram a regulação da radiodifusão, ainda na década de 1930 – Decreto n. 20.047/1931 e Decreto n. 21.111/1932 – passando pelo Código Brasileiro de Telecomunicações de 1962 (Lei n. 4.137/62) e pelas normas mais recentes, como por exemplo, a Lei da TV a Cabo (Lei n. 8.977/95), não houve preocupação do legislador com a concentração da propriedade no setor. Não há qualquer norma eficaz que limite ou impeça a propriedade cruzada na mídia e, portanto, a sua concentração.


Um decreto do período autoritário, todavia, estabeleceu, sim, limites para as concessões de radiodifusão. O Decreto-Lei 236/1967, em seu artigo 12, reza que:




‘Cada entidade só poderá ter concessão ou permissão para executar serviço de radiodifusão, em todo o País, dentro dos seguintes limites: (…)


I – estações radiodifusoras de som (RADIO):


a) locais:


ondas médias, 4;


freqüência modulada, 6;


b) regionais:


ondas médias, 3;


ondas tropicais, 3 (sendo no máximo 2 por estado);


c) nacionais;


ondas médias, 2


ondas curtas, 2;


II – estações radiodifusoras de som e imagem (TV):


10 (dez) em todo o território nacional, sendo no máximo 5 (cinco) em VHF e 2 (duas) por estado; (…)


§ 7º – As empresas concessionárias ou permissionárias de serviço de radiodifusão não poderão estar subordinadas a outras entidades que se constituem com a finalidade de estabelecer direção ou orientação única, através de cadeias ou associações de qualquer espécie’.


A interpretação que o Ministério das Comunicações tem feito deste texto legal, todavia, considera entidade como significando ‘pessoa física’ e, ademais, não leva em conta o parentesco. Da mesma forma, em relação ao parágrafo 7, o MiniCom não considera as ‘redes’ – formadas com a ‘afiliação’ contratual de emissoras – como constituindo subordinação ‘com a finalidade de estabelecer direção ou orientação única‘. Assim, as limitações impostas pelo Decreto-Lei n. 236/67 à concentração na radiodifusão se tornaram historicamente inócuas.


O resultado dessa interpretação é a formação e a consolidação no Brasil de um sistema de mídia, protagonizado pela iniciativa privada comercial, que tem, desde as suas origens, a propriedade cruzada e a concentração como uma de suas principais características. Não há melhor exemplo que os Diários e Emissoras Associados e as Organizações Globo, os dois maiores grupos de mídia historicamente já existentes no país.


Por outro lado, só em abril de 2008, com a criação da Empresa Brasil de Comunicação – EBC (Lei 11.652), definida como empresa pública de comunicação, foi dado o primeiro passo para o eventual e distante equilíbrio entre os sistemas público, privado e estatal mandado observar pelo ‘princípio da complementaridade’ do artigo 223 da Constituição. Até então, não havia sequer a positivação legal do conceito de sistema público e, muito menos, a possibilidade de sua utilização como critério na outorga e renovação das concessões de radiodifusão.


** SEXTO: o vínculo histórico de deputados federais e senadores com as concessões de rádio e TV, gerador do fenômeno do coronelismo eletrônico, cria uma situação absurda na qual o membro de um dos poderes concedentes – o Congresso Nacional – se confunde com o próprio concessionário.


Na verdade, existe uma controvérsia não resolvida em torno da legalidade de um político, no exercício do mandato eletivo, ser concessionário de radiodifusão.


O Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT, Lei nº. 4117/62) determina que quem esteja em gozo de imunidade parlamentar não pode exercer a função de diretor ou gerente de empresa concessionária de rádio ou televisão (parágrafo único do Artigo 38). Esta norma foi confirmada pelo Regulamento dos Serviços de Radiodifusão que exige, como um dos documentos necessários para habilitação ao procedimento licitatório, declaração de que os dirigentes da entidade ‘não estão no exercício de mandato eletivo’ [n. 2, alínea d), § 5º do artigo 15 do Decreto 52.795/63].


A Constituição de 1988 também proibiu que deputados e senadores mantivessem contrato ou exercessem cargos, função ou emprego remunerado em empresas concessionárias de serviço público (letras a. e b. do item I do Artigo 54).


Apesar dessas normas, o Ministério Público Federal, ao ajuizar seis ações civis propostas na Justiça Federal, em julho de 2007, pela anulação das concessões de rádio a deputados federais que votaram nas sessões da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados e renovaram suas próprias concessões, interpretou que a Constituição ‘coíbe apenas a participação dos parlamentares na gestão das empresas concessionárias do serviço (de radiodifusão)’, e permite, inclusive, ‘a celebração de contratos com o ente público, desde que obedeçam a cláusulas uniformes‘. [As ações civis do MPF se basearam em Representação feita à Procuradoria Geral da República pelo PROJOR/Observatório da Imprensa disponível aqui. Cf. também Venício A. de Lima, ‘Parlamentares e radiodifusão: relações suspeitas’ in idem, 2006.]


Da mesma forma, em reposta a uma consulta do site Congresso em foco, a Secretaria de Serviços de Comunicação Eletrônica do Ministério das Comunicações afirmou em 29 de março de 2010:




‘A Constituição não veda a propriedade. O parlamentar só não pode ser gerente ou diretor de meio de comunicação neste caso como em outros casos, a família não está impedida. Não há previsão legal para esse impedimento’ [ver aqui].


Já em relação ao poder concedente, a Constituição de 1988, exige a realização de licitação para a concessão de serviços públicos. Diz o artigo 175:




‘Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.’


Regulamentada pela Lei 8.666/1993, a norma do artigo 175 foi estendida ao serviço público de radiodifusão pelo Decreto n. 1720 de 11 de novembro de 1995, que alterou o Regulamento dos Serviços de Radiodifusão (Decreto 52.795 de 31/10/1963). A partir de então, as outorgas de radiodifusão só poderiam ser feitas por meio de licitação.


Além disso, a Constituição de 1988 também determina no § 1º do seu artigo 223 que os atos de outorga e renovação de concessões de radiodifusão deverão agora ser apreciados pelo Congresso Nacional. O Poder Executivo passou, portanto, a compartilhar o seu poder de outorga com o Congresso Nacional, vale dizer com deputados e senadores.


Enquanto a controvérsia legal não se resolve, há registros da utilização de emissoras de rádio e televisão por políticos ‘no exercício de mandato eletivo’, em seu benefício pessoal e interesse privado, pelo menos, desde o início da década de 1980 [ver Jornal do Brasil (1980)]. E não se pode ignorar que essa prática antidemocrática estabelece uma clara assimetria na disputa eleitoral entre aqueles que usam o rádio e a televisão em benefício próprio e aqueles que não têm acesso ou só tem acesso parcial a esses serviços públicos.


Observações finais


Existem várias outras normas e procedimentos relativos às concessões do serviço público de radiodifusão que mereceriam ser comentados. Lembro, por exemplo:


1. a duplicidade de outorgas proibida por Lei, mas fora da fiscalização pública de vez que o cadastro geral dos concessionários do serviço público de rádio e televisão não está disponível para acesso ao cidadão; e


2. a ausência de fiscalização adequada sobre as transferências (vendas) de concessões de rádio e TV para terceiros que pode tornar inútil todo o eventual rigor nos procedimentos de outorga e renovação de concessões.


É necessário lembrar também que estamos vivendo um importante período de transição tecnológica do sistema analógico para o sistema digital de radiodifusão. A digitalização representa a possibilidade concreta de significativo aumento no número de concessionários e o cumprimento do princípio democrático da máxima dispersão da propriedade (cf. Edwin Baker).


Durante anos, enormes esperanças foram alimentadas pelos movimentos sociais envolvidos na defesa da democratização do mercado das comunicações e confirmadas, temporariamente, pelo Decreto n. 4901/2003, que criou o SBTVD-T. O Decreto n. 5.820/2006, no entanto, não só confirmou a escolha do modelo japonês de TV Digital como criou a polêmica figura jurídica da ‘consignação’ que outorga mais 6 MHz para cada uma das atuais empresas concessionárias de televisão aberta. Desta forma, foram perdidas as enormes potencialidades que a digitalização oferecia, sobretudo para a multiplicação plural dos concessionários.


Registre-se que aguarda julgamento no Supremo Tribunal Federal a Arguição Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3944, apresentada pelo PSOL, em 2007, que argúi a inconstitucionalidade do Decreto n. 5.820/2006.


É importante registrar, por fim, indícios de que tem crescido a consciência do cidadão sobre a importância de sua participação nas questões relacionadas às políticas públicas de comunicações e, em particular, na definição dos critérios de concessão e renovação dos serviços públicos de radiodifusão.


Neste sentido, entidades da sociedade civil lançaram a Campanha por Democracia e Transparência nas Concessões de Rádio e TV, sob o mote ‘Concessões de rádio e TV: quem manda é você’ [ver aqui], em outubro de 2007. Por outro lado, verificou-se importante participação de segmentos organizados da sociedade civil, em todos os estados da Federação, nos debates e encontros preparatórios da 1ª Conferência Nacional de Comunicação, realizada em dezembro de 2009.


Há, todavia, um obstáculo formidável a ser vencido na consolidação das políticas públicas de comunicações como tema da agenda pública. A instituição que exerce o maior poder de definir esta agenda – a grande mídia – não se interessa pelo debate e, mais do que isso, boicota a cobertura jornalística das iniciativas e eventos que tentam promovê-lo – como fez no caso da 1ª Confecom.


Dessa forma, no nosso país, permanece possível a utilização de um serviço público – as emissoras de rádio e televisão – para o benefício do próprio Estado e/ou de uns poucos interesses privados, contrariando a Constituição e perpetuando uma prática antidemocrática na sociedade brasileira.


Referências


Costa, Sylvio e Brener, Jayme (1997); ‘Coronelismo eletrônico: o governo Fenando Henrique e o novo capítulo de uma velha história’; Comunicação&Política; Vol. IV, nº 2, NS, maio-agosto; pp. 29-53.


Costa, Hélio; ‘A renovação de concessões das emissoras de TV’ in Observatório da Imprensa n. 469 de 25 de janeiro de 2008. Disponível aqui; acesso em 29/3/2010.


Grupo de Mídia de São Paulo, Mídia Dados – 2007.


Jornal do Brasil, ‘No ar, a voz do dono’; 7 de dezembro de 1980.


Leal, Victor N. (1949-1986), Coronelismo, Enxada e Voto; São Paulo: Editora Alfa-Omega.


Leal, Victor N. (1980); ‘O Coronelismo e o Coronelismo de cada um’ in Dados-Revista de Ciências Sociais, vol. 23, nº 1; pp. 11-14.


Lima, Venício A. de; ‘Parlamentares e radiodifusão: relações suspeitas’ in idem, Mídia: Crise Política e Poder no Brasil, Editora Fundação Perseu Abramo, 2006.

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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, deDiálogos da Perplexidade – reflexões críticas sobre a mídia, com Bernardo Kucinski (Editora Fundação Perseu Abramo, 2009)