Os empresários de jornal estão mais preocupados com as empresas do que com os jornais que editam. Se fosse o contrário, os jornais talvez estivessem melhores e as empresas menos vulneráveis. Pela segunda vez em pouco mais de um mês o patronato desperdiçou uma oportunidade de ouro para exibir a disposição e o ânimo da imprensa brasileira.
Em seguida ao seqüestro da equipe da TV Globo pelos narcoterroristas do PCC divulgou-se aquela desastrosa conclamação endossada pelas cinco entidades empresariais de mídia. Com um erro gramatical no título, formatação burocrática e conteúdo desfocado, tanto a mídia como os mediadores se apresentaram de forma tíbia perante os mediados – a sociedade. [Ver, neste Observatório, ‘Mídia perdeu a oportunidade para impor um pacto contra o terror‘, ‘Entidades defendem um basta à violência‘ e ‘A manifestação pífia dos patrões contra o terror‘.]
A imprensa de um país é a sua grande narradora, dá o tom e estabelece paradigmas. Ameaçada ostensivamente pelos bandidos, não poderia claudicar na resposta nem parecer desfibrada. Para garantir o seu mandato como porta-voz da cidadania – inclusive perante os demais poderes da República – nossa imprensa precisaria encorpar a voz e reforçar o desempenho.
Comissários & comissárias
A segunda oportunidade foi desperdiçada três semanas depois, durante o 6º Congresso Brasileiro de Jornais. No exato momento em que os lobbies da internet, das operadoras de telefonia e da publicidade internacional juntam-se para decretar o fim dos jornais e do jornalismo de qualidade, e para se apresentarem como seus substitutos, nossa imprensa organiza um convescote para comemorar a sua incapacidade de responder aos desafios tecnológicos tal como já fizera nas décadas 20 e 50 do século passado, quando o rádio e a TV ameaçaram o seu protagonismo.
Caso tenha acompanhado pelos jornais a frouxa cobertura do congresso de jornais, o leitor fiel deve ter ficado efetivamente convencido de que se trata de uma espécie em extinção. O último dos dinossauros certamente morreu de forma mais gloriosa, com um tremendo berro. O mesmo acontecerá com os derradeiros leões antes de serem erradicados da savana africana.
Mas os indômitos quality papers, que ao longo de quatro séculos ensinaram a humanidade a acompanhar as mutações da realidade, preparam-se para sair de cena desnorteados, desprovidos até do instinto de sobrevivência. A deletéria convivência com lobistas e consultores está desfibrando nossos grandes jornais.
O patronato jornalístico brasileiro cansou; essa personificação de Quarto Poder desgasta, exige vigilância, disposição de luta, vocação missionária. Nas redações alguns de seus comissários & comissárias parecem eufóricos diante da possibilidade de esquecer o Hezbollah, os cataclismos e assim ficarem livres para cuidar de gastronomia e decoração (de acordo com a metáfora utilizada pelo diretor de redação do mais pujante jornal regional brasileiro, citado pela revista The Economist e, não por casualidade, de propriedade do presidente da ANJ ) [ver remissões abaixo].
Benditos antropólogos
Ocuparam o pódio do congresso os principais gatekeepers da nossa imprensa diária. Representaram as suas empresas, deram os seus recados com o brilho habitual. Ninguém lhes pediu uma poção ou a agenda apta a animar nosso jornalismo e, junto com ele, o emperrado sistema de produzir avanços.
Coube ao antropólogo Roberto DaMatta, mediador do debate entre as estrelas Otavio Frias Filho, Sandro Vaia, Marcelo Rech e Josemar Gimenez, oferecer a palavra mágica: o jornal deve exercer o estranhamento. O Globo, que melhor descreveu este debate, não registrou a reação da douta platéia ao inesperado e raro vocábulo (1/9, pág. 14)
Roberto DaMatta é colaborador de jornais, atento observador da mídia, não está afeito ao jargão nem aos procedimentos habituais das redações. Mas ofereceu uma bandeira simples e, ao mesmo tempo, perturbadora.
Estranhamento é espanto, relutância, resistência. Quando jornais conseguem espantar e espicaçar, acaba a letargia provocada pelo excesso de informações. Então os leitores acordam, reagem, notam diferenças, perguntam. Ao terminar de ler uma matéria, num diário ou num semanário, o cidadão deve estranhar: por que razão só agora chamam a minha atenção para isto?
Estranhamento é uma sensação de incômodo. Agradável incômodo – vontade de saber mais e entender tudo. Estranhamento não é palavra usual nas colunas mundanas nem nas páginas onde se ensina o leitor a ficar rico. Muito menos nas pensatas ou gritatas que se alternam nas páginas de opinião. Estranhamento é uma forma superior de duvidar. Ferramenta essencial do ceticismo.
Benditos antropólogos que diante de tantos caciques reinventam as palavras e apenas com elas desvendam o caminho da inovação.