Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Eu sou o cara

Um dos aspectos mais comentados do seqüestro que comoveu o país nas duas últimas semanas foi a atuação das emissoras de TV. Escudadas na ‘missão de informar’ – mas, na verdade, sequiosas de superar a qualquer custo a audiência das demais –, acabaram fornecendo a Lindemberg Alves informações preciosas sobre a posição e as ações dos policiais e, com sua irresponsabilidade, provavelmente contribuíram para o desfecho trágico do episódio.


‘Suave, mari magno turbantibus aequora ventis, e terra magnum alterius laborem spectare’ (é doce, quando no vasto mar os ventos sacodem as águas, contemplar da terra firme o trabalho de um outro), escreveu Lucrécio em seu tratado ‘De Rerum Natura’ [Da Natureza das Coisas].


Sem querer arvorar-me em juiz do que outros acharam correto fazer, pergunto: a espetacularização de situações como essa não acirra ainda mais as forças psíquicas que se podem supor em ação na mente de um criminoso?


Criminoso, sim – pois Eloá Pimentel não morreu por causa da televisão nem porque os policiais invadiram o cativeiro, e sim porque seu ex-namorado atirou contra ela. Mas cabe perguntar que efeitos pode ter produzido a transformação dele – enquanto tinha uma arma na mão – em celebridade nacional.


Angústia


Os trechos de conversa entre o seqüestrador e o capitão Adriano Giovanini publicados pela imprensa sugerem que eles não foram pequenos – como aliás notaram tanto o professor Norval Batista Jr., da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), quanto o coronel Eduardo Félix: ‘Ele queria provar a todo instante que tinha o domínio da situação’, disse o militar; ‘a mídia exacerbou a psicopatia e a megalomania que estavam em jogo’, explicou o especialista.


As declarações de Lindemberg e o modo como se portou durante aqueles quatro dias terríveis sugerem que se trata de uma pessoa muito frágil.


No que consiste essa fragilidade? De modo sumário, numa organização da personalidade que evidencia mecanismos mentais muito arcaicos, uma angústia extremamente intensa, e modos de lidar com ela que, em vez de a diminuir, potencializam a sensação de estar sendo atacado por forças maléficas contra as quais é preciso se defender a todo custo.


Partamos do que disse o rapaz: ‘Meu problema é com a menina que tá aqui na minha frente. Tenho que desenrolar…’. Desenrolar o quê? O que ele via em Eloá, que a tornava tão indispensável a sua sobrevivência psíquica? Claramente, bem mais que um objeto de desejo ou de amor.


Tudo indica que havia projetado nela algo de si mesmo, uma parte ao mesmo tempo amada, odiada e temida, que nem podia recuperar nem tolerar que ‘fosse embora’.


Projeções maciças


Esse modo de estabelecer vínculos é menos raro do que se poderia supor. Ele tem o nome de ‘relação de objeto narcísica’ e, quando se instala, acarreta conseqüências bastante graves – embora deva ficar claro que, no mais das vezes, não levam o sujeito a matar alguém.


Em primeiro lugar, a relação com os outros significativos (pais, namorados, cônjuges) é permeada por projeções maciças: eles se convertem em artigos de primeira necessidade, um pouco como a droga para o adicto.


Deles se exigem uma presença física e um grau de atenção que comprovem o quanto amam o sujeito; mas, como o que este almeja é fundir-se com o objeto para poder controlá-lo, por assim dizer, ‘de dentro’, o fato de que o ser amado é diferente dele e tem vida própria é sentido como insuportável.


A ameaça de o perder (real ou imaginária) desencadeia uma angústia aterradora, que freqüentemente se exprime por ciúmes patológicos e por atuações que podem chegar à violência. Pelo que mostrou de si durante o seqüestro, Lindemberg parece fazer parte desse grupo de pessoas.


O termo que empregou – desenrolar – é revelador: precisava separar-se do que havia depositado na ex-namorada. Como diz a psicanalista Joyce McDougall (‘Le Théâtre en Rond’, em ‘Théâtres du Je’ [O Teatro de Arena, em Teatros do Eu]), o outro é aqui ‘considerado e tratado como uma parte de si mesmo que deve ser amada, odiada, dominada ou destruída’.


Mas isso era justamente o que não podia fazer: ‘Estou confuso’, ‘preciso ficar sozinho’, ‘olho para a frente e não vejo caminho’. A total impotência, impossível de ser admitida porque significaria a ruína de uma auto-imagem já muito pouco sólida, é negada pela megalomania: ‘Eu sou o cara’, ‘sou o príncipe do gueto, o cara que manda no local’.


A espetacularização do seu ato tresloucado, a evidência de que (como disse o coronel) havia conseguido mobilizar todo aquele aparato (e a atenção de milhões de telespectadores), teve o efeito de reforçar sua crença nessas fantasias grandiosas. Tudo indica que elas estavam a ponto de se converter em delírio: ‘Tem um anjinho e um diabinho, e o diabinho está falando mais alto’.


A projeção das dúvidas em entes sobrenaturais, devidamente divididos em um bom e um mau, fica aqui patente.


Também é visível o apelo a uma figura capaz de pôr fim àquela situação, alguém dotado de poder suficiente tanto para silenciar o diabinho quanto para fazer Eloá desistir de o abandonar: ‘Invade essa p… logo, mano. Tô falando para você invadir. Se a polícia passar segurança, a gente sai de mãos dadas […], mas preciso de sinceridade.’


Bebês


A necessidade de controlar essa parte cindida de si é ilustrada por McDougall com um comportamento observado em alguns bebês que sofrem de insônia crônica: para adormecer, precisam sempre da presença física da mãe.


Isso sugere que não conseguiram interiorizar a imagem materna em grau suficiente para poder se apoiar nela e se desligar com tranqüilidade do estado de vigília; pode-se dizer que a figura da mãe não chega a se constituir no núcleo de um objeto interno ‘bom’ e reassegurador.


Por conseguinte, o sentimento de identidade desses futuros adultos – de ser ‘eu’, ao mesmo tempo separado dos outros e ligado a eles por vínculos sólidos e variados – permanece como que esburacado, gelatinoso, lacunar, exigindo ser reforçado pela injeção constante de ‘cimento narcísico’ por parte do objeto a quem se delegou essa função.


Se estas observações permitem formular uma hipótese sobre por que Lindemberg não pôde suportar ser abandonado pela namorada, por outro lado não o isentam da responsabilidade pelo crime que cometeu.


Isso dito, ficam as lições das quais bastante se falou nos últimos dias.


Mesmo que nada garanta que um seqüestrador enlouquecido não vá matar sua vítima, a polícia deve receber os equipamentos que poderiam ter monitorado o que se passava no apartamento, e as emissoras precisam rever sua idéia do que é informar: a busca insensata dos picos de audiência as levou a se tornarem cúmplices involuntárias de um assassinato. Que se lembrem disso quando o próximo seqüestrador apontar a arma para a sua vítima.

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Psicanalista, professor titular da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e colunista da Folha de S.Paulo