A matéria ‘No mesmo lado‘, publicada na sexta-feira 29/1) no jornal A Gazeta, de Vitória (ES), renova a imagem discriminatória que o agronegócio da celulose construiu sobre as populações indígenas no Espírito Santo. Afirmando que hoje índios e empresa estão ‘do mesmo lado’, o texto não fornece informações éticas e adequadas historicamente sobre a questão indígena no Espírito Santo, ocultando os inúmeros casos de violação de direitos humanos infligidos aos indígenas em função dos pleitos pelos seus territórios.
Em tom genérico e bastante preconceituoso, o texto não fornece informações à população sobre o conflito dos indígenas por suas terras, mas, pelo contrário, acirra a imagem negativa que o negócio da celulose construiu ao longo de 40 anos de exploração das terras indígenas e quilombolas.
O cronista diz que a luta indígena tem ‘origem na esperteza de alguns e na má fé de outros, incentivados pela motivação ideológica de terceiros’. Por outro lado, a empresa já foi condenada judicialmente por racismo e discriminação e outro cronista do jornal A Gazeta foi condenado pela justiça por ato injurioso e discriminação dos indígenas. Diante da imobilidade da justiça, os atos de resistência à opressão do Estado foram classificadas por ele como ‘ações violentas dos indígenas que queriam mais terras ou mais dinheiro’. Em contrapartida, as conquistas advindas da persistência das reivindicações pelos direitos indígenas foram classificadas por ele como ‘um gesto de boa vontade’ da empresa.
A lição dos indígenas
Permanece o tom discriminatório contra os direitos destas populações sem uma razão que não o espírito racista que quer apagar a história do povo brasileiro e impor formas não democráticas. O texto está incorreto ao afirmar que a ‘novela [sic] começou dez anos depois de o Grupo Aracruz se instalar na região após ter adquirido as terras das famílias que lá moravam, quase todas elas descendentes de italianos’. Não é demais lembrar que historicamente as populações indígenas no estado sempre estiveram às voltas com a defesa dos seus direitos, como mostram os estudos históricos do século 18 e 19 que registram massacres de indígenas em diferentes momentos.
Ademais, só é possível entender a raiva e as injúrias dos cronistas coloniais capixabas se levarmos em conta que eles fazem parte do ‘apagão democrático’ do atual governo, cuja marca é invisibilização dos direitos sociais e sua transformação em ‘questão de polícia’, em função de uma pauta comprometida com a predação da natureza. Apenas assim é possível entender por que o cronista afirma que os índios, ‘ao invés de trabalhar para assegurar o seu sustento, como fazem as pessoas de bem [sic], preferem se valer de movimentos de motivação política para obter benefícios de legitimidade duvidosa’.
A busca por direitos por parte dos indígenas e quilombolas nos dá uma lição importante, pois, como afirmou o cacique Toninho Guarani, ‘se a população não sabe mais quais sãos seus direitos, nós, povos indígenas, sabemos’. Neste sentido, só é possível pensar o sucesso dos indígenas como uma vitória da sociedade brasileira sobre as formas de discriminação racial. A vitória não é da empresa, como sugere o título dado pelo cronista, mas dos indígenas que nos ensinam que a realização democrática é uma luta árdua contra interesses, estes sim, que se aproveitaram de conjunturas políticas da ditadura militar e da corrupção para expropriar milhares de pessoas de seus direitos.
Interesses antidemocráticos
A luta indígena e quilombola é parte importante da resistência ao modelo que associa capital e política e varre para debaixo do tapete os danos sociais e ambientais que as gerações futuras ainda vão nos cobrar severamente. Se há alguma ‘legitimidade duvidosa’ na questão indígena, ela é a forma pela qual o agronegócio da celulose se implantou e multiplicou em terras capixabas, como começou a demonstrar a CPI da Celulose, arquivada antes mesmo de apresentar qualquer conclusão.
Finalmente, o papel dos jornais deve ser a informação e a capacidade de equalizar os diferentes pontos de vista da sociedade, expressando sua diversidade, mas defendendo o respeito aos direitos humanos. Um jornalismo manco não tem nenhuma fundação senão servir a interesses antidemocráticos. Um jornalismo manco é incapaz de imaginar a defesa dos direitos humanos que, negados, condena todos a formas obscuras de vida social.
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Antropólogo e professor na Universidade Federal do Espírito Santo