Ele, sempre discreto e calado em seus amores e dores, foi alvo do jornalismo de celebridades. ‘Não chore ainda não, que eu tenho um violão e nós vamos cantar.’ Sequer pôde dar uma namoradinha no mar do Leblon, onde ‘a espinha das tuas montanhas quase arromba a retina de quem vê’. O fato de estar junto de uma morena rendeu fofoca na Contigo!, em Quem, na Veja; parlatório de exposição da vida privada em veículos, cuja qualidade de textos, articulistas e corpo editorial é bastante questionável. ‘Mesmo com toda fama, com toda brahma, com toda lama, a gente vai levando essa chama.’
Há tempos, a narrativa jornalística de temas nacionais perde relevância em matérias sensacionalistas e equivocadas, que, de longe, se distanciam de um debate inteligente. ‘Nós aprendemos palavras duras como dizer: perdi.’ Fatos desvestidos de complexidade, macerados pelo senso-comum e desfocados de suas causas se espalham na mídia. ‘Já passou, se você quer saber, eu já sarei, já curou, me pegou de mau jeito, mas não foi nada, estancou.’ Relatos alimentados pelo gosto de um imediatismo barato, em cujo desenho se apresenta apagado o quadro social de tensões políticas e contradições materiais presentes no país. ‘Não vale a pena despertar.’
Grande parte do que se conta na mídia nacional (e de como se faz isso) silencia uma ‘página infeliz da nossa história’; deixa de lado a urdidura do tempo como resultado de relações sociais e políticas e sabota os deslocamentos de posição do sujeito, modelados pela ideologia. ‘Quem te viu, quem te vê.’ Em lugar de registrar a falta extrema de um projeto soberano para o país, fora do eixo economês global, fabricantes de notícias enredam relatos pessoais, bafafás de celebridades, festanças de notáveis como se documentassem temas imprescindíveis para a vida nacional. Fragmentados horizontes de miopia. ‘E do amor gritou-se o escândalo, do medo criou-se o trágico, no rosto pintou-se o pálido e não rolou uma lágrima nem uma lástima pra socorrer.’
Na ruas
Escolheram fotografar o poeta do sublime, colorir com traços picantes uma história de adultério e estampá-lo em bancas de revista. ‘Você vai me seguir aonde quer que eu vá.’ Justo ele, criador de tantas mulheres, que cantou ‘a Rita levou meu sorriso, no sorriso dela meu assunto’; que pôs a mãe no colo do guri ‘pra ele me ninar’; que tirou a quentura do encontro e a possibilidade do afago-desejo da maternidade mutilada, cujo filho foi morto pela repressão. ‘Só queria abraçar meu anjo e deixar o seu corpo descansar. Logo ele que traçou os passos da Bi-atriz ‘a não andar com os pés no chão’ e que deu olhos molhados a Carolina na janela da sua solidão. ‘Nos seus olhos fundos, guarda tanta dor. A dor de todo esse mundo.’ Mulheres anônimas com seu cotidiano em que ‘se faz tudo igual’, em que se cozinha com ‘açúcar e com afeto’ e em que se espera ‘a primeira festa, a primeira fresta, o primeiro amor’.
Na quadrilha das paixões e ternuras, também dançam temas indiciadores de desencontros. ‘Ó metade amputada de mim, leva os teus sinais.’ Partidas, partos e partes de rupturas. ‘Meu sangue errou de veia e se perdeu.’ Na dramaticidade das separações, atrás da porta dos abandonos, emerge a voz que materializa o rasgo. ‘Dei pra maldizer o nosso lar.’ Com precisão de ourives do verso, ele formula ora efeitos de calma e temperança. ‘Não se afobe, não, que nada é pra já.’ Ora lampejos de desconforto; ‘tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu. A gente estancou de repente ou foi o mundo então que cresceu’.
Nele, a trajetória de intelectual não se distanciou das ruas: passeata dos cem mil, resistência contra a ditadura, campanha pelas diretas já, apoio a movimentos de trabalhadores ontem e hoje. ‘Quando eu morrer cansado de guerra, morro de bem com a minha terra.’ Uma bandeira de elaboração, desfraldada ao vento do processo criativo genial, marcada pelo torno do verso e pela manufatura da prosa. ‘Ai essa terra ainda vai cumprir seu ideal.’
Confundiram-no
Deixar de lado o homem, cuja biografia se construiu em décadas de lutas poéticas e enfrentamentos históricos, e narrá-lo como pivô de uma briga conjugal com direito a destemperos de vingança, planos de traição dignos de um dramalhão mexicano, entrevistas farejadoras de ódio é, no mínimo, mais uma marca da distorção borbulhante que reina em grande parte dos veículos impressos do país. ‘Vida, minha vida, olha o que é que eu fiz.’ Também revela como os processos de seleção das notícias e fechamento das pautas orbitam em torno de jogos de interesse e de desejos inconfessos de vender informações a qualquer custo, seja invadindo esferas particulares, seja expondo a vida alheia em casos de impacto. ‘Sei que além da cortinas são palcos azuis e infinitas cortinas com palcos atrás.’
Nesse caso, as editorias em questão resolveram tratá-lo como personagem assíduo freqüentador da Ilha de Caras, daqueles que mostram os rastros de sua intimidade à bagatela de promoções diversas com direito a exposição de namorados, filhos, cachorros e carros. ‘O que não tem conserto, nem nunca terá.’
Na certeza, confundiram-no. ‘Vejo o tempo obrar a sua arte, tendo o mesmo artista como tela.’ Com absoluta certeza, não souberam ler. ‘Com o nome paciência, vai a minha embarcação, navegando com o tempo e tendo igual destinação.’ Refletem a miopia de uma prática jornalística decadente, predatória na escolha de alvos e abordagens, salvo raras exceções. ‘Foi tudo ilusão passageira, que a brisa primeira levou.’ Na contramão dos furos e furtos de reportagem, urge ouvi-lo uma vez mais. ‘Ninguém vai me acorrentar enquanto eu puder cantar, enquanto eu puder sorrir.’
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Professora-doutora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo