Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Existe uma ética na comunicação governamental?

‘A comunicação de um governo com a sociedade, o modo como ele se dirige ao cidadão, é o melhor retrato da ética desse governo.’ Essa frase, de Celso Nucci, jornalista responsável pelo planejamento editorial da Radiobrás entre 2003 e 2007, propõe uma nova equação para a comunicação governamental no Brasil. À primeira vista, parece uma obviedade, mas quase ninguém acordou para o seu significado real. É como se os operadores dessa área acreditassem justamente no oposto.


Não é preciso dedicar muito tempo a observar o que está aí para concluir: a comunicação oficial tem sido vista e operada como forma de ocultar as mazelas, muito mais do que um mecanismo para incluir o cidadão no exercício do poder e da fiscalização do poder. Acredita-se que ela não deva refletir os valores mais profundos que animam os governantes, ou, pior ainda, imagina-se que ela seja capaz de dissimulá-los – quando esses valores, na prática, não correspondem ao que se espera de uma autoridade pública. O mais irônico de tudo é que, ainda assim, mesmo quando usada como um biombo ou uma máscara, a comunicação oficial ainda reflete o que se entende por ética no âmago do governo. Basta ter olhos para ver.


Em suma: até mesmo quando é feita para esconder aquilo que poderia envergonhar a autoridade, a comunicação governamental acaba refletindo uma ética: a ética segundo a qual o enunciador da mensagem quer sonegar informações ao cidadão. Mesmo quando busca a total opacidade, contém uma transparência involuntária que persiste.


Implicações éticas


Não por acaso, a imensa maioria das peças de comunicação oficial se deixam organizar pela gramática da publicidade. Tenta-se vender alguma imagem positiva ao cidadão como forma de afastá-lo da função de fiscalizar quem governa. Essa mentalidade infantiliza o debate político. Supõe que a opinião pública pode ser tutelada por estratégias de marketing – ou, mais exatamente, do marketing político que se abrigou dentro da máquina pública e que se julga capaz de produzir consensos como tem se mostrado hábil para orientar o consumo.


Deu-se aí, no interior do Estado, algo que ainda não foi suficientemente debatido e compreendido: a comunicação oficial se deixou açambarcar pelo discurso e pelo método da publicidade. Basta observar como, em questão de duas décadas, as distinções entre a propaganda eleitoral e a comunicação oficial praticamente caíram por terra. Hoje, a voz oficial dos governos é o prolongamento da voz publicitária das campanhas políticas – que, por sua vez, replicam as técnicas de sedução e convencimento próprias da publicidade comercial vulgar. Os profissionais responsáveis pela fala institucional dos governos provêm do mesmo time daqueles que comandam as campanhas do horário eleitoral no rádio e na televisão.


Quais as implicações éticas da incorporação dos truques da propaganda comercial – e, por extensão, das estratégias de marketing – pela comunicação oficial, governamental ou estatal? De que forma esse fenômeno passa a modular a relação política entre governos e cidadãos?


Promiscuidades ancestrais, agora sob nova direção


Antes de tudo, há que se considerar o modo pelo qual a publicidade adquire centralidade na cena política. É bastante possível que parte do papel antes exercido, ou classicamente exercido no Brasil pelas empreiteiras, na promiscuidade entre poder político e capital privado, tenha sido transferido para as mãos de empresas relacionadas ao negócio da propaganda e da comunicação.


Antes, os governos se gabavam de transformar as cidades num ‘canteiro de obras’. Ser um grande ‘tocador de obras’ era uma condição almejada por qualquer político junto à opinião publica. Com efeito, obras no espaço público, aos olhos de todos, constituíam uma forma de comunicação política. Davam uma idéia de dinamismo, de empreendedorismo, de pujança. Concreto, fumaça e tratores no meio da rua, atravancando a via dos cidadãos, indicavam progresso. Depois dessa fase, a noção de que comunicar os feitos é mais determinante do que os próprios feitos deu lugar a um crescimento do peso específico dos comunicadores profissionais dentro do núcleo estratégico do poder. Dos políticos bem-sucedidos da atualidade, diz-se que são bons comunicadores ou comunicadores natos. A expressão ‘tocador de obras’ saiu de moda.


Rigorosamente, a idéia de que comunicar os feitos é mais determinante do que os próprios feitos também perdeu atualidade. Hoje, comunicar é o feito em si. Construir a imagem é o destino de todo o esforço dos governantes – mesmo que, para isso, alguns hospitais, pontes ou escolas sejam necessários. Assim como as obras se converteram em um acessório do ‘bem principal’ que é a comunicação, as empreiteiras se deslocaram, progressivamente, do centro para a periferia da estratégia política.


Relações promíscuas que sempre pontuaram, ou mesmo definiram os vínculos entre o poder econômico e o poder político – que transita pelo poder governamental, mas a ele não se resume – agora tendem a ter seu catalisador menos na construção de obras que na construção de imagens. Quem responde pela função de catalisador é o negócio da propaganda comercial.


Uma escala na propaganda eleitoral


Nesse sentido, uma primeira implicação ética da incorporação da gramática publicitária pela comunicação oficial é a transformação dos elementos e dos personagens da política em mercadorias imaginárias. Do mesmo modo, as relações de cidadania se transformam em relações de consumo. Naturalmente, há um estágio intermediário nessa trajetória. A publicidade não foi admitida no âmago do aparelho de Estado assim, sem mais nem menos, percorrendo uma viagem direta, sem escalas. Antes, ela se aclimatou na propaganda eleitoral, um território limítrofe entre o Estado e a sociedade.


Embora os políticos abençoados pela habilidade retórica sejam tão antigos quanto os grandes oradores da Grécia – os demagogos, no sentido menos pejorativo que a palavra pode ter –, a comunicação com as massas só se firmou como extensão e alavanca da política a partir do século 20, com o advento de novas tecnologias. Os totalitarismos resultaram, em boa medida, dessa incorporação da comunicação de massas à máquina estatal. Nazismo, fascismo ou stalinismo têm esse traço comum: a estatização de formas de comunicação eivadas de fanatismo e intolerância. A privatização da comunicação política, porém, é algo mais recente – e foi no bojo disso que a escola da propaganda comercial faz escala nas campanhas eleitorais antes de se aninhar no Estado.


Na segunda metade do século passado essa privatização se fará sentir com mais ênfase, tanto na Europa como nos Estados Unidos. Passada a fase mais aguda de estetização do Estado pela estatização do fanatismo (e da propaganda do fanatismo) – coisa que ainda hoje aparece aqui e ali, num anacronismo de mau gosto –, sobreveio a era da comunicação política em moldes abertamente publicitários, o que deu ensejo a uma estética igualmente problemática. As campanhas ganharam a complexidade de uma indústria à parte dentro da indústria da propaganda, admitindo especializações e diferenciações.


Com a consolidação da sociedade de consumo, na qual as relações de consumo passaram a dar respostas às indagações próprias das relações de cidadania, a propaganda eleitoral explodiu como negócio e como linguagem. O político profissional se tornou, então, uma mercadoria que o consumidor-eleitor pode adquirir, ou consumir, por meio do voto. Nesse mercado imaginário, o voto funciona como moeda. Do ponto de vista do político, é como marca ‘vendável’ que ele será eficiente. Quanto mais ‘vendável’, mais eficiente.


O mesmo mecanismo comparece à transformação dos direitos em marcas desejáveis, em mercadorias imaginárias. É assim que se anunciam, na televisão, em filmetes que disputam espaços de trinta segundos com propagandas de automóveis ou dentifrícios, vagas nas escolas públicas, vacinação de crianças, novos vagões de trem no sistema transporte. As mercadorias imaginárias são condutores de felicidade para os telespectadores. A felicidade como dádiva. A condição de mercadoria reveste mesmo o mais elementar dos direitos, pois até mesmo eles, os direitos, se não forem bem ‘vendidos’, não serão assimilados.


O publicitário do século 21 substituiu o ideólogo do início do século 20


A propaganda vende qualquer coisa, até mesmo a felicidade geral da nação. Basta que os direitos ou os candidatos saibam se amoldar aos seus códigos. Nada mais revelador – e ao mesmo tempo cômico – do que ouvir, de estrategistas de campanhas eleitorais que dão errado, que o problema do candidato era um ‘problema de conteúdo’. A toda campanha essa desculpa aparece, religiosamente. É como se o publicitário – que está para a política do limiar do século 21 como o ideólogo estava no início do século 20 – se desculpasse: ‘A minha parte eu fiz, mas o fulano não ajuda, ele não tem conteúdo’.


E qual a parte do publicitário, exatamente? A forma? Não. A parte do publicitário é tudo. A forma, nesses casos, é o conteúdo. Quando o publicitário diz que o candidato, ao qual virou as costas, não tem conteúdo, está dizendo, na verdade, que aquele candidato não soube falar a língua da propaganda. Saiu-se mal no personagem. Um candidato vai mal ‘de conteúdo’ na exata medida em que um pacote de bolachas, um par de sapatos, um cartão de crédito ou um automóvel vão mal de conteúdo. Não há diferença substancial entre uma coisa e outra. São mercadorias à venda no imaginário.


Não que isso signifique que qualquer aventureiro mediano, desde que conte com uma boa propaganda, se dê bem nas eleições. Ou melhor: significa exatamente isso, mas isso, o tipo medianamente medíocre, digamos, pode não ter durabilidade na política (ainda que às vezes até tenha). Mas, voltando ao ponto, não se quer aqui dizer que a publicidade produza artificialmente tudo e qualquer coisa no universo da política. Não é assim que funciona. Aqui apenas se pretende enfatizar que, passando pelas campanhas eleitorais, essa linguagem, a linguagem da publicidade comercial, acabou se tornando a língua dominante da política.


Nesse sentido, embora a publicidade política não seja a senhora do destino das nações, não há político que, sem falar a língua que ela delimita, possa ser alçado à condição de líder de grande projeção. Isso significa, portanto, que em alguma altura da trajetória dos líderes, por assim dizer, autênticos, esse casamento com a publicidade, casamento que envolve a alma, terá de ser celebrado estruturalmente. Não há mais outra passagem.


A lógica do mercado chega ao âmago do Estado


A partir dessa escala, a escala na campanha eleitoral, o negócio da propaganda comercial terminou por se instalar no Estado, levada pelos próprios candidatos vitoriosos – os supostamente bons de conteúdo. Com isso, nesse deslocamento que se cumpriu no curso de poucas décadas, a linguagem do Estado no seu contato com o cidadão vai assumindo o sotaque da propaganda eleitoral que, por sua vez, já era uma ramificação do idioma da publicidade genérica. Isso atinge alguns excessos inacreditáveis, como esse de governos terem marca de fantasia, logotipo e slogan próprios, como se fossem empresas. A legislação impede – sabiamente – que a comunicação estatal promova nomes de pessoas, mas não as impede de colocar o seu próprio logotipo carimbado sobre cada ato daquilo que julgam ser o ‘seu’ governo.


Nisso, bem a propósito, reside um dos melhores símbolos da privatização da comunicação política. No plano da representação simbólica do Estado, a nossa cultura admite, gloriosamente, que ele, Estado, seja carimbado pela marca indireta de um governante de passagem. Pior é que não se trata apenas de vaidade. Há nisso uma razão de ordem mnemônica. Aquela marca tem a função de cimentar a memorização, pelos eleitores, das realizações daquele candidato. Nessa operação, o governante se apropria do mérito pelas realizações de seu governo, como se elas fossem mais dele do que da administração pública. Assim ele acumula ‘capital publicitário’ para as próximas eleições. Depois, mais tarde, essa memória será invocada, despertada outra vez, pelos filmes de propaganda eleitoral.


Ou seja, assim como a lógica publicitária vai do mercado para dentro do Estado, ela também volta, de dentro do Estado, para o ambiente do mercado – ou do negócio privado das campanhas eleitorais. Nessas idas e vindas, vai se aprofundando a promiscuidade sistêmica da comunicação política – promiscuidade que fomenta e favorece muitas outras.


Portanto, em termos sistêmicos, ainda que essa palavra traga suas armadilhas, é possível e é responsável afirmar que a comunicação estatal, governamental ou oficial é o prolongamento da comunicação das campanhas eleitorais – e vice-versa. A ética de uma é idêntica à ética da outra. Em ambas, o que existe é a ética que mercantiliza a política. Que infantiliza a política.


O verbo infantilizar não é exagerado. Ao promover a privatização da linguagem oficial e dar à voz governamental um sotaque de televenda, procura hipertrofiar no cidadão a adesão contente, infantil, ao tempo que procura inibir ou desativar a participação crítica e fiscalizadora. Ela infantiliza o público uma vez que não trata o cidadão como fonte verdadeira de todo o poder, mas como um sujeito cuja opinião pode e deve ser tutelada pelo poder. Trata-o, enfim, como criança. Segundo essa escola, comunicar seria a atividade de reforçar a ‘agenda positiva’ e esquecer – ou anular – os problemas. Comunicar seria vender esperanças e otimismo – ou, meramente, ilusões. Pode haver melhor retrato da ética de um governo?


Quando se deixa modular inteiramente pelo idioma publicidade, a política não é mais cultivada como processo por meio do qual os cidadãos se capacitam a renovar, substituir e superar suas próprias lideranças. Em lugar da cultura política surge o consumo da política. A lógica publicitária, assim posta, é avessa ao princípio de que os cidadãos são cidadãos à medida que fiscalizam as autoridades. Ela não os mobiliza, mas procura anestesiá-los. No afã de apenas vender, anunciar e promover os méritos – às vezes falsos – dos caciques, constrói o culto à personalidade. Tenta produzir idolatrias e inibir a emancipação. Quando vista sob essa perspectiva, essa comunicação se revela não apenas esquiva à ética pública, mas também como inimiga da própria ética política: ela é sua negação.


É possível vislumbrar outra forma de comunicação pública, ao menos no âmbito do Estado – ou, em outros termos, é possível conceber e implementar outra ética para a comunicação pública? Em torno dessa pergunta, passando por algumas experiências recentes da comunicação pública no Brasil, voltarei com outros artigos.

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Jornalista, professor da Escola de Comunicações e Artes e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP