Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Falhas técnicas no vôo da mídia

A mídia se propôs a cobrir intensamente o apagão aéreo. Palavras como Boeing da Gol, Legacy, overbooking, controladores, Infraero, desmilitarização, CPI do apagão, entre outras, integraram-se como nunca ao vocabulário da imprensa e dos brasileiros. Desde setembro de 2006, não houve um dia sequer em que não se leu ou ouviu algum desses termos.

Na cobertura dos meios de comunicação transpareceu cidadania e indignação com o descaso da segurança aérea, o que é louvável. Todavia, também mostrou muitas ‘falhas técnicas’. À semelhança das decolagens com atrasos de várias horas nos aeroportos do país, a imprensa chegou tarde aos ares da questão. Bem antes da colisão do Boeing com o Legacy, já existiam problemas técnicos na aviação, praticamente não noticiados.

Em 2000, por exemplo, Cássia Seixas Sampaio Araújo, pesquisadora da USP, já anunciava irregularidades no tráfego aéreo, principalmente de São Paulo. Ela denunciou a tecnologia cheia de falhas, o desrespeito às normas internacionais de segurança e, sobretudo, as precárias condições de trabalho dos controladores de tráfego. ‘Se nada for feito, o sistema atual deve entrar em colapso em, no máximo, três anos’, prognosticou Cássia em entrevista ao Jornal da Tarde. Essa notícia foi dada depois pelo Fantástico, mas não foi alardeada pela mídia.

Vôo rasteiro

Por ocasião do acidente envolvendo o Boeing da Gol, que levou à morte 154 pessoas, veio à tona a crise já existente, disfarçada pelo governo e não divulgada pela imprensa. Como quem chega de pára-quedas, a mídia começou a expor o caso, mas fez isso de modo superficial. ‘Ora, fincar links ao vivo nos principais telejornais do país e esquecer as matérias investigativas para cutucar a onça do problema não é jornalismo, é fofoca. Salvo uma ou outra iniciativa de cavoucar a origem de tudo, o que se fez no Brasil poderia entrar para os livros de comunicação como perfeito exemplo de jornalismo chapa-branca’, argumenta Fabiana Bertotti, jornalista de Curitiba.

Alberto Dines, no programa Observatório da Imprensa na TV, em 6 de dezembro de 2006, também questionou a cobertura inicial da mídia: ‘Desde as primeiras horas, a imprensa contentou-se em reproduzir declarações apressadas e levianas das autoridades. No caso, autoridades federais. Na semana seguinte à colisão, essas autoridades já apontavam culpados e criavam um clima para os inevitáveis linchamentos.’

Fabiana também criticou a repetição exagerada do assunto sem novas contribuições. ‘Não é de passar despercebido um transtorno dessa magnitude, mas fazer disso pauta constante nos principais veículos é de cansar o público’, ela opina.

‘Mas o que ficou claro é que a mídia não sabia de tudo; que havia muita coisa acontecendo nos bastidores e que não foi levada ao conhecimento do público. Esta foi a sensação da maioria dos leitores’, ressalta Carlos Castilho, jornalista e consultor de comunicação. Para Castilho, a mídia deixou os brasileiros com noção de que existia um conflito, mas não se sabia o porquê. ‘A sensação que ficou foi a de que somos petecas sendo jogadas de um lado para outro’, completa.

Inicialmente, os jornalistas contentaram-se em registrar declarações das autoridades, noticiar números de vôos atrasados e divulgar casos de passageiros desesperados para viajar, sem apresentar as raízes da crise. ‘Minha tia, que ficou 30 horas no aeroporto internacional de Guarulhos para viajar ao Ceará, me confidenciou: ‘Os repórteres ficavam vigiando para ver quando iríamos comer, ou cochilar, daí chegavam com tudo. Parecia que nem tinha mais assunto.’ Se tinha, não foi tão enfatizado como o apagão aéreo’, exemplifica Fabiana. A mídia, nessa fase, não voou à imensidão da notícia, mas contentou-se com um vôo rasteiro.

Outro fator que levou as primeiras coberturas à superficialidade foi a falta de preparo para noticiar e analisar em profundidade um assunto tão técnico. ‘Eu não tenho certeza de que a mídia estivesse bem preparada para enfrentar esse tipo de cobertura, que é uma cobertura de infra-estrutura. Nós não temos muitos jornalistas especializados em infra-estrutura’, comenta o jornalista Rogério Christofoletti, doutor em comunicação, responsável pelo projeto Monitor de Mídia e um dos coordenadores da Rede Nacional de Observatórios da Imprensa (Renoi). ‘Além disso, essa cobertura lida com um setor da vida pública que é a Infraero, a qual ainda é uma caixa-preta para nós. Acredito que a mídia foi pega com a surpresa dos acontecimentos’, emenda Christofoletti.

Segundo Dines, no Observatório da Imprensa na TV, a Folha foi quem deu o passo inicial para a mídia deixar a superficialidade e começar a investigar mais a fundo o tema. ‘Quem recuperou a credibilidade da imprensa foi a Folha de S.Paulo, com sua repórter política Eliane Cantanhêde, que teve a coragem de investigar na direção contrária da sugerida pelas autoridades. Depois da Folha, aliás, muito depois da Folha, veio a revista Época e, na sua esteira, o Fantástico de domingo’, explicou Dines.

Políticas de longo prazo

Com o passar dos meses, a mídia começou a se aprofundar no tema e a analisar retrospectivamente os fatos, expondo-os também à medida que se desenrolavam. Todavia, nesse vôo mais alto na mídia, notou-se uma tendência: o anti-lulismo. Os editoriais dos jornalões deixaram bem clara a posição anti-Lula. No editorial da Folha de 8 de abril (‘Vôo Cego’), a figura do presidente foi atacada com frases como: ‘desmentidos, esparrelas, tergiversações e recuos têm marcado a atitude presidencial em diversas situações de crise’; ‘incapacidade do governo Lula para traçar linhas coerentes e rápidas de atuação’; ‘que todos apertem os cintos, o piloto não sumiu. Continua sem saber para onde vai’.

O Estado de S. Paulo, no editorial de 12 de abril (‘Lula impera’), ironizou o resultado da pesquisa do CNT/Sensus: ‘Tudo o que vai bem no Brasil se deve ao presidente Lula. Nada do que vai mal é por culpa dele.’ Depois, continuou: ‘Tamanha dissociação entre a sua figura, envolta numa aura imaculada, e o descalabro oficial conhecido pela esmagadora maioria da população – o amaldiçoado apagão aéreo que vem irrompendo surtos desde outubro passado – que apenas um quarto das duas mil pessoas ouvidas na sondagem realizada no começo no mês apontou o governo federal como o principal responsável pela crise (como se a patética incapacidade de resolvê-la pudesse ser debilitada a outrem).’

Obviamente, a crítica a um governo que titubeia ante as decisões é coerente, mas não se pode culpar unicamente Lula. ‘O governo tem responsabilidade e foi fraco, sim; não lidou bem com a situação no ano passado e explodiu agora novamente’, garante Christofoletti. Mas ele ressalta que o problema já vinha crescendo antes mesmo de Lula chegar ao poder. ‘É claro que o governo tem responsabilidade nisso, mas não só este governo, mesmo ele estando no segundo mandato. As políticas infra-estruturais para um país devem ser pensadas para décadas.’

Um grito de socorro

Outro problema são os adjetivos e comparações nada jornalísticas usadas em relação ao presidente da República. ‘Como um avião em vôo cego, sem o contato com a torre, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva está perdido’, publicou a IstoÉ na matéria ‘Daqui para a frente, comandante?’, de 11 de abril de 2007. A mídia não está errada ao tentar encontrar o principal culpado do caos aéreo e atribuí-lo a Lula – se o fizer jornalisticamente. Na verdade, as pesquisas, a opinião de jornalistas e de órgãos também tidos por culpados apontam para o governo como o principal responsável do caos.

A Gol afirma não ter parte na crise, apesar de 9% dos brasileiros atribuírem a culpa às companhias aéreas, de acordo com recente pesquisa do CNT/Sensus. ‘Os problemas que vêm ocorrendo nos aeroportos nos últimos meses são de responsabilidade dos órgãos controladores da aviação civil no Brasil. A Gol, assim como os passageiros, também tem sido prejudicada por esta situação’, articulou Sabrina Gottschlisch do Prado, da Coordenadoria Centro de Documentação e Memória da Gol.

Os controladores de tráfego aéreo têm 12% da culpa, segundo a mesma pesquisa. As rebeliões desse setor foram condenadas. ‘Foi um ato impensado dos controladores, pois eles deixaram milhares de pessoas impossibilitadas de viajar, causando transtornos. Os cidadãos não têm nada a ver com os problemas internos de cada grupo de trabalho’, afirma Manoel Jovencio da Silva, do auxílio à navegação aérea do aeroporto de Confins, Minas Gerais.

Embora a atitude dos controladores não tenha sido correta, suas paralisações foram ‘um grito de socorro’, e não ‘uma simples rebelião de militares’, como retratou Wellington Rodrigues, presidente da Associação Brasileira dos Controladores de Tráfego Aéreo, em 5 de abril de 2007, no site oficial do órgão. Os controladores reagiram à letargia do governo em tomar decisões.

Cognome pejorativo

O problema, todavia, surge quando o posicionamento político de um veículo influencia o caráter da notícia. Uma pesquisa do CNI/Ibope sobre a avaliação do governo Lula foi manchetada por alguns jornais assim: ‘Ibope aponta que 62% dos eleitores confiam no presidente’ (Estadão); ‘Ibope confirma avaliação positiva de petista’ (Folha); ‘Pesquisa do Ibope mostra que apagão aéreo atingiu popularidade de Lula’ (O Globo).

Jornalismo como o de O Globo, mostrou o viés anti-lulista – um vôo suicida para a reputação da imprensa. Lula pode ser atingido, mas a mídia também sofre as conseqüências. Um exemplo clássico foi o da Folha que, no afã de culpar Lula pelo caos, publicou matéria sem a devida apuração. A manchete de domingo 8 de abril foi: ‘Entidade alertou Lula de falhas no controle aéreo’. Segundo a matéria, a Federação Internacional das Associações de Controladores do Tráfego Aéreo produziu um documento no qual constava que ‘o sistema de controle de tráfego aéreo brasileiro é falho e tem um nível baixo de segurança’. A questão é que a matéria atestou, como ressaltou o título, que esse relatório foi entregue a Lula logo após o acidente com o Legacy – o que não aconteceu. Só no dia 14 a Folha esclareceu o deslize no ‘Erramos’, mas sem o destaque que a inverdade recebeu na principal manchete de capa.

Em memorial, a Infraero condenou oficialmente a cobertura da mídia. ‘A imprensa brasileira, exercendo seu livre e consagrado direito de liberdade e com sede de informar, noticia incessantemente temas vinculados ao que se denomina crise do setor. Aliás, até o cognome acaba por receber sentido pejorativo – pela força de uso –, uma vez que a expressão poderia ser impressa como ‘crise no setor’. O uso da conjunção ou da preposição na frase altera a transitoriedade para a permanência da crise e do específico para o geral. Contudo, no regime democrático, ao exercer sua obrigação de informar, cometem-se alguns atropelos, violando a honra, a dignidade e caráter dos agentes públicos e das instituições’, assegurou Eleuza Lores, diretora de engenharia da Infraero, no documento oficial.

Desafio era pensar no leitor

De acordo com Eleuza, uma das grandes falhas da imprensa é julgar e condenar antes de consultar a fidedignidade das fontes. Ela critica, de maneira específica, a reportagem de capa da IstoÉ (‘Abrimos a caixa-preta da Infraero’) de 28 de março de 2007. E classifica como sensacionalistas essas e outras reportagens da mídia que tentam liquidar a imagem pública da empresa.

O presidente nacional do PT, Ricardo Berzoini, também faz coro a Eleuza. Em entrevista ao blog Conversa-Afiada, em 3 de abril, Berzoini afirmou que a mídia tenta denegrir a imagem do governo. ‘Há uma avaliação parecida com a que fizemos na época das eleições, ou seja, uma tentativa permanente de descredenciar a autoridade do governo e uma busca de relatar os fatos sempre pela ótica de quem quer desqualificar a gestão pública’, argumentou Berzoini.

Para Christofoletti, o motivo de a mídia atacar o presidente Lula é na verdade uma reação aos problemas causados especialmente à classe média. ‘A ‘gritaria da mídia’ se deve também ao fato de que esse é um problema que afeta muito a classe média. Se nós tivéssemos um caos nas rodoviárias, teríamos outro tipo de cobertura, não tão passional como o que ocorreu. Então a mídia faz muito o jogo da classe média nesse sentido e se condói muito com isso’, argumenta Christofoletti.

Mas, embora tenha esbravejado contra Lula, a imprensa demonstrou mais interesse no campo político que realmente no social. ‘O grande desafio da imprensa era pensar no leitor, em como ele poderia resolver o problema e minorar os efeitos das conseqüências do apagão, em vez de procurar jogar sempre a coisa para o lado político’, sugere Carlos Castilho. Para ele, a mídia se preocupou mais em defender seus ideais políticos do que em ajudar a sociedade. ‘Espera-se pela próxima tragédia para ver quando a mídia vai, de fato, prestar um serviço mais enfático à sociedade’, ironizou a jornalista Fabiana Amaral. ‘Pena ter que haver vítimas para isso’, conclui.

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Respectivamente, estudantes do 4º e 3º ano de Jornalismo do Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp)