As declarações da psicanalista Eliane Mantega, mulher do ministro da Fazenda, vão ganhar os prêmios ‘Maria Antonieta de Ibiúna’ e ‘Avestruz de Ouro’ concedidos aos campeões da categoria ‘De Costas para a Vida’.
Compreende-se o seu incômodo em aparecer como vítima de um seqüestro múltiplo junto com o ilustre marido e os filhos, mas a sua complacência com os bandidos que assaltaram a mão armada a chácara dos amigos em Ibiúna é ultrajante: ‘Eles só queriam dinheiro… foram supergentis… ladrões-de-galinha’ [ver ‘Correção política, insensibilidade moral‘].
Com fraseado mais coloquial e igual distanciamento, reproduziu a doutrina palaciana adotada para enfrentar a indignação que tomou conta do Brasil (sobretudo das brasileiras) diante da barbaridade cometida contra o menino João Hélio, no Rio. Para o quase ex-ministro Márcio Thomas Bastos, a violência é um processo que precisa ser enfrentado por outro processo, atalhos ‘emocionais’ nada resolvem. Resolvem sim, Excelência, processos inanimados costumam ir para o lixo da História [ver ‘Portinari versus Lula‘].
Compromisso contínuo
A mídia engoliu esta, como engole qualquer coisa politicamente correta mesmo quando moralmente revoltante. A mídia está mais esbaforida do que nunca, seu estoque de adrelina evaporou com o calor do verão. O governo não está interessado em dar prioridade às questões que envolvem impunidade. É tabu. Levado às últimas conseqüências, um debate sobre o tema fatalmente transbordaria para o Dossiêgate que acaba de ser chutado mais uma vez para escanteio.
Decidiu o Procurador-Geral da República que o senador Aloízio Mercadante não pode ser indiciado pela Polícia Federal por ter direito a foro especial. Está certo, todos estão certos, os culpados mudaram-se para endereços desconhecidos. Com a decisão, a compra do dossiê contrabandeado para as páginas da IstoÉ ficou na esfera dos aloprados municipais do PT. O dinheiro foi arranjado por eles, eles é que desenvolveram este tipo de ‘jornalismo investigativo’.
Em outras palavras: o ‘processo’ que culminou com um dos maiores crimes eleitorais dos últimos tempos vai continuar rolando nas gavetas de baixo – e por muito tempo, já que o delegado Paulo Lacerda anunciou que ficará mais seis meses à frente da Polícia Federal.
Na esfera palaciana, o único processo que interessa tocar é o PAC (Plano de Aceleração do Crescimento). De olho nas bolhas e euforias que produzirá na publicidade, a mídia esquece a sua decisiva contribuição para dar qualidade, consistência e sustentabilidade a este crescimento.
Amostra desta modesta contribuição foi a matéria de capa da Veja sobre a extorsão por telefone, o tal ‘Disque-Seqüestro’ (edição 1996, de 21/2/2007). A modalidade é conhecida há alguns anos, na internet há tempos corriam advertências, ninguém prestava atenção. De repente, uma reportagem de capa numa semana morta, pré-momesca, e o cidadão descobre como enfrentar este novo tipo de ameaça à sua segurança. Os bandidos terão que inventar outro passatempo para as suas horas vagas nos presídios. E os editores terão que adotar outros critérios para programar o seu calendário: todas as edições são importantes, mesmo quando coincidem com feriados, festas, férias.
O compromisso da imprensa com a sociedade é contínuo, apesar das delícias da praia e da montanha.
Filosofar em público
No domingo (18/2), no caderno ‘+Mais!’ da Folha de S.Paulo, o filósofo Renato Janine Ribeiro produziu um dos mais comoventes desabafos sobre o martírio do menino João Hélio. Não foi uma tomada de posição, mas uma dramática exposição de perplexidades e doloridas opções penais diante do horror que estamos condenados a assistir.
Este Observatório chamou a atenção, a mídia tinha outras preocupações e só retornou ao filósofo na semana seguinte (domingo, 25/2), na mesma Folha: em três textos antagônicos, apenas um deles (da professora Olgária Matos) procurou entendê-lo [ver aqui].
Deve existir algum código na ANJ (Associação Nacional de Jornais) para obrigar os associados a absterem-se de comentar textos publicados pelos concorrentes – assim, evitam-se polêmicas capazes de abalar a instituição. A verdade é que não chamou a atenção dos sensíveis radares da mídia este filósofo que não tem respostas prontas na ponta da língua, nem palavras de ordem, entregue à revolta de conviver com as diversas crueldades exibidas pela sociedade brasileira.
Renato Janine Ribeiro quer filosofar em público, fazer pensar, quer compartilhar o seu cartesianismo – penso, logo existo – com a comunidade. A mídia não entra nessa. Não tem tempo para sofrer dilemas, prefere a fulanização, sentenças instantâneas para limpar a pauta.
Aventureiros e descendentes
A tragédia brasileira é que os vetores mais poderosos da sociedade são conflitantes – nada os atrai, tudo os distrai. Ou afasta. Para o governo e governantes punir é perigoso, suicídio, equivale a andar em areia movediça. Para a mídia, a questão crucial de Crime e Castigo só serve para os cadernos dominicais, em resenhas sobre Dostoievski. Nos chamados dias úteis, é perfeitamente inútil, não cabe. Mas o ser humano também existe e pensa no meio da semana. Não há lugar: a maldita segmentação e a sua filha espúria, a cadernização, não deixam.
A mídia sabe, mas não se aflige: sujeitos a guincho, apenas os veículos mal-estacionados. O resto é impune, impunível, inimputável. Ou coitadinhos ‘ladrões-de-galinha’, ‘supergentis’ que ‘só querem um dinheirinho’. Sem falar nos ‘amigos da casa’, cada vez em maior número.
O Brasil tem jeito, basta convocar urgentemente o repórter Borat para arrasar as hipocrisias deste imenso Portugal e a sua mídia insensível com os 50 mortos nas estradas mineiras em fevereiro – só num desastre morreram 16, que mereceram 10 linhas – e com as seis chacinas paulistanas nas quais foram para o beleléu quase 30 cidadãos.
O Cazaquistão é aqui, mas os aventureiros cazaques e seus descendentes, os cruéis cossacos, estão bem disfarçados.