Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Falta o essencial

A desencontrada cobertura dada pela imprensa brasileira à publicação de fotografias que supostamente retratam o jornalista Vladimir Herzog no cárcere do DOI-Codi, antes de ser morto sob tortura, falha na ausência de certos cuidados que acabaram por expor a renovado constrangimento um padre canadense e uma militante brasileira do movimento católico chamado progressista. Ambos já haviam sido objeto de perseguição pelos órgãos de informação do governo até os anos 1980, e mais de uma vez revelaram ter sido vítimas de violência, tendo sido obrigados a posar para fotos em circunstância deletéria.

Mas não é apenas ao desconsiderar o vício de origem de muitas das imagens catalogadas por ‘arapongas’ ao longo dos últimos 30 anos que a imprensa perde outra grande oportunidade de esclarecer de vez o que eram os chamados ‘serviços de inteligência’ do regime militar.

Se recuasse alguns poucos meses na observação daquele ano de 1975, o jornalismo iria encontrar material consistente para demonstrar que a trama da chamada ‘linha dura’ do poder militar tinha uma seqüência lógica que conduzia a um golpe dentro do golpe, com conseqüências inimagináveis em termos de violência institucional. A rigor, a imprensa iria revelar que a morte de Herzog colocou paradeiro numa escalada de insanidades que acabariam por conduzir a uma tragédia sem precedentes na história recente do país.

O precedente mais próximo seria o de Jacarta, em 1967, quando o ditador Suharto, com apoio do governo dos Estados Unidos, comandou o assassinato de cerca de 500 mil pessoas supostamente comunistas, esquerdistas ou simplesmente indivíduos de temperamento pacifista e formação humanista, desbaratando o patrimônio intelectual da Indonésia e eliminando a inteligência mais crítica daquele país.

A ‘Operação Jacarta’ imaginada pela ‘inteligência militar’ brasileira aconteceu de fato e deveria alcançar duas mil pessoas, na maioria militantes fichados do Partido Comunista Brasileiro, sindicalistas, políticos, estudantes e professores universitários e agentes comunitários vinculados à ala da igreja católica identificada com o então arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns. Entre esses alvos encontrava-se grande número de jornalistas.

‘Lenta, gradual, segura’

Em agosto de 1975, o PCB, então grudado ao MDB (pai do atual PMDB e do PSDB), começou um trabalho de coleta e análise de informações que deveriam respaldar um amplo movimento de suporte à decisão do presidente da República, general Ernesto Geisel, de promover a ‘flexibilização’ do regime.

Toda a militância disponível, incluindo simpatizantes e estudantes sob influência dos principais quadros do PCB, fora mobilizada para a tarefa. Este observador, então um estudante de Jornalismo na Fundação Armando Álvares Penteado, em São Paulo, foi designado para algumas entrevistas. Entre outros, deveria conversar com o sindicalista Paulo Vidal, dos metalúrgicos do ABC, e o general Ednardo D’Ávila Melo, então comandante militar na região, sempre sobre a perspectiva de mudança institucional e redemocratização.

Em lugar de Paulo Vidal, a entrevista em São Bernardo foi feita com Luiz Inácio da Silva, o Lula, que havia pouco antes assumido a presidência do sindicato. A entrevista com o general foi feita em agosto, mais de duas semanas depois da solicitação ao serviço de Comunicação Social do Exército. Estavam presentes, com este observador, duas estudantes da FAAP, que chamaremos de ‘Júlia’ e ‘Ana’.

Fomos recebidos por um afável oficial, que deixou escapar logo no começo da conversa que regressava de viagem recente ao Chile. Em seguida, pudemos conversar com o comandante Ednardo Melo, com proibição explícita de publicar ou divulgar sob qualquer forma, mesmo em relatório ou conversa, qualquer palavra ali trocada.

Quando ‘Júlia’, que tinha um temperamento mais sanguíneo, se irritou com as afirmações do general de que o Brasil gozava da única forma de democracia possível, o comandante se levantou, deu a volta à mesa e disse que sabia de nossos movimentos, das entrevistas que estavam sendo feitas e revelou que estava em andamento uma operação para ‘acabar com a festa’. Em questão de semanas, afirmou, duas mil pessoas seriam ‘neutralizadas’. Citou os nomes dos professores que coordenavam as entrevistas, todos militantes destacados do PCB.

Saímos do quartel assombrados. À porta, o oficial que nos recebera me puxou pelo braço e sussurrou: ‘Se circular por aí uma linha do que vocês ouviram, serão 2001 pessoas. Jacarta vai parecer um piquenique’.

Preparei um relatório e o entreguei ao jornalista Rodolfo Konder. Na primeira oportunidade, contei-lhe o que pude sobre o encontro. Estava absolutamente aterrorizado com o que sabia que estava para acontecer, mas Konder procurou minimizar. Lembro-me claramente de seu sotaque carioca ao pronunciar a blague: ‘Não se preocupe; a distensão do general Geisel é lenta e gradual, mas é segura’.

Refletir à exaustão

Eu estava sendo apresentado ao célebre centralismo democrático do PCB. Os quadros que realmente importavam haviam chegado à conclusão de que o processo de abertura do governo Geisel não conheceria obstáculos e que o determinismo histórico se impunha sobre qualquer resistência da linha dura. A realidade contradizia a análise? Edite-se a realidade, como acontece amiúde em nossa imprensa. Talvez faltasse a Konder e seus companheiros de militância imaginação suficiente para admitir que o horror estava por ser desencadeado

Exatas oito semanas depois, começaram as prisões. Todos os professores envolvidos no projeto das entrevistas foram arrastados para as celas do DOI-Codi. Recebíamos notícias de torturas, dezenas de colegas tiveram que se esconder. Cópias do relatório da entrevista convenciam os mais engajados a buscar refúgio. Então, veio a notícia da morte de Vladimir Herzog. Depois, reuniões no sindicato, a missa na Sé, a libertação dos presos.

A imprensa brasileira sabe que aqueles acontecimentos estavam assim encadeados. Que os fatos retornem agora, como fantasmas solitários, fora daquele contexto de terror, não é bom jornalismo. Estivemos muito próximos de uma tragédia sem precedentes na história do país e não convém que se mantenha o véu sobre o contexto real em que tudo aconteceu.

Foi a morte de Vlado que interrompeu a espiral de insanidades que estava desatada. O general Ednardo D’Ávila personificou o grau de perversidade a que pode chegar o Estado que dá as costas à democracia. Cabe à imprensa refletir à exaustão e aprofundar no que for possível toda análise que contribua para nos lembrar o quanto pode custar a liberdade.

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Jornalista