Lenina Pomeranz, professora aposentada da Faculdade de Economia e Administração (FEA) da USP, critica em entrevista ao Observatório da Imprensa a limitação de fontes de informação usadas pela grande imprensa brasileira no trato da crise ucraniana.
“Você pode observar não só a ausência de jornais ocidentais mais críticos, tipo Guardian e Independent, da Inglaterra, como não se tem nada, nenhuma notícia de jornal publicado na Rússia. E não é por falta de conhecimento da língua, porque muitos desses jornais têm edições em inglês”, argumenta a professora.
Em 1989, por ter feito doutorado em Moscou nos anos 1960, Lenina foi indicada pela direção da FEA para participar de um intercâmbio de pesquisadores entre a faculdade e o Instituto de América Latina da Academia de Ciências da então União Soviética. Ficou três meses na URSS para acompanhar o processo da “perestróica”, a reestruturação do sistema desencadeada por Mikhail Gorbachev para tentar criar um “socialismo de face humana”. Ela está terminando um livro sobre esse processo de mudança. A Ucrânia, explica, entra na pesquisa como parte da questão russa.
Aos 81 anos, Lenina dá aula na FEA. “Sou aposentada. Dou aula voluntariamente. Existe uma categoria de professor sênior. Querem continuar a dar aula e participar da vida acadêmica, mesmo tendo sido expulsos compulsoriamente aos 70 anos de idade”.
A seguir, a entrevista.
Internet não resolve
Como teria sido possível evitar que o noticiário sobre a crise ucraniana fosse tão ideologizado, com representações tão alucinadas, como as que pretendem que a Ucrânia tenha se tornado um bastião da democracia? Putin comparado aos czares… Acho que quem compara Putin aos czares não tem ideia do que foi o czarismo na Rússia.
Lenina Pomeranz – Ontem de manhã (segunda, 17/3) fui a um debate na Faap e disse que a imprensa esconde certas coisas, não publica tudo. Fui criticada de maneira muito firme pelo coordenador, Roberto Macedo [nota: erro do autor da matéria; o coordenador do debate foi o jornalista Heródoto Barbeiro], que, aliás, durante a palestra foi excelente, depois me levou para o programa de televisão dele à noite: “Não, você pode acessar o que você quiser”. Eu disse que tinha usado o Estado de S. Paulo e a Folha, os jornais que leio. Ele respondeu: “A imprensa não se resume a esses dois”. Eu disse: “Realmente, não se resume. Mas o que esses jornais reproduzem é só o Washington Post, o New York Times, você não tem a cobertura de outros jornais que têm posições relevantes, tipo Guardian, Independent”. A Mary Dejevsky, editorialista responsável pela página internacional do Independent, tem uma posição muito firme em relação ao que acontece na Rússia.
Para me rebater, Macedo perguntou aos estudantes se eles não entravam na internet, pegou o celular para mostrar que estava vendo Guardian, BBC etc. Eu falei: “Isso é você, porque o grande público não vai procurar na internet as notícias necessárias”. E dei o exemplo dos 65 alunos que tive no ano passado: quando eu perguntei se sabiam que estava sucedendo tal coisa, ninguém tinha lido. Internet todo mundo pode acessar, mas acessa quem tem interesse pela notícia. Agora, quem tem interesse pelo que está acontecendo na distante Crimeia? Nem sabiam que existe um país com esse nome.
Realmente falta muita coisa no noticiário. E eu tenho que dizer que é preciso levar em conta que eu não leio todos os jornais. Não leio o Globo, por exemplo, não leio o Valor, onde saem às vezes algumas notícias que amigos me mandam. Minha postura tem que ser entendida com cuidado, por conta daquilo que eu leio.
Você pode observar não só a ausência de jornais ocidentais mais críticos, tipo Guardian e Independent, da Inglaterra, como não se tem nada, nenhuma notícia de jornal publicado na Rússia. E não é por falta de conhecimento da língua, porque muitos jornais têm edições em inglês. Eles têm Moscow Times, Moscow News, Nova Gazeta, o Gazeta.ru; quando você entra na internet, eles perguntam se você quer a tradução em inglês. Se houvesse interesse em ouvir as duas partes e fazer uma análise menos ideologizada, como você falou, você teria outras fontes de notícias que não exclusivamente essas que aparecem nos jornais.
Nos EUA, diversidade de opiniões
Não sei se minha interpretação está correta, mas eu vejo como algo atrelado à posição do governo americano. Quase por inércia.
L.P. – E não é só governo americano. Acho que é a postura ocidental, de uma maneira geral. Nos Estados Unidos também existem vozes interessantes. Eu assino há vários anos um clipping de jornais sobre a Rússia, em inglês, editado em Washington pela George Washington University. Chama-se Johnson’s Russia List. É importantíssimo. Nele você vai ver que mesmo nos Estados Unidos existem algumas vozes que não sancionam aquilo que está sendo feito e dito. Alguns analistas criticam a postura dos assessores do Obama. Ainda ontem eu li uma matéria do Thomas Graham, que é o marqueteiro da fundação do [Henry] Kissinger, não aprovando as coisas. Mandando ter prudência, mostrando que as coisas são um pouco distintas daquilo que domina na imprensa.
O próprio Kissinger fez um artigo bem mais sensato do que essa média…
L.P. – É evidente. Tem que haver sensatez.
Existe alguma fonte ucraniana nesse material que você lê? Algum jornal…
L.P. – Eu não vi. Acho que não tem.
Existir, deve existir. Provavelmente não tem expressão.
L.P. – Algum jornal ucraniano. Mas o Johnson’s não inclui na sua lista. Você tem mídia dos Estados Unidos, do Canadá, da China, Taiwan, tem o Asia Times, um quilo de fontes de referência. Mas eu nunca vi nada da Ucrânia especificamente.
Clima de fim de mundo
Na sua percepção, como leitora de todas essas fontes e com conhecimento acumulado de outros carnavais, você concordaria com esse clima que às vezes se cria de “estamos a um passo da hecatombe”, o mundo vai acabar na Crimeia…, ou, sei lá, na fronteira da Ucrânia com a Polônia?
L.P. – Esse clima foi de certa forma aventado no começo da bagunça. Hoje não é mais. Depois que os Estados Unidos e a União Europeia fizeram as tais sanções, reduzir-se a proibição de vistos, sequestro de bens de algumas figuras do poder executivo, do legislativo e de assessoria do governo russo, ninguém acredita que se vá para uma hecatombe. Acho que não há mais na imprensa, de uns tempos para cá, depois que se falou do referendo etc., a mínima perspectiva de hecatombe, naquilo que eu leio.
O pessoal está mais sensato. Está vendo que não convém. Mesmo quando o Putin deu aquela entrevista e teve gente que achou que ele estava com cara de louco, porque estava com muita raiva, não se aceita a tese de que vá haver hecatombe. O Putin está muito seguro de suas posições. Mesmo porque ele não tem condição de fazer uma guerra…
Nenhum lado tem…
L.P. – …é levar o mundo para a destruição. A Rússia herdou um material que não foi descartado durante os acordos com Gorbatchov, lá atrás, mas ela ainda investe no complexo industrial-militar e tem um poderio militar e nuclear que não é para brincadeira. Os assessores de Obama não entendem o papel de Putin, apesar de ele ter sido o primeiro estadista a solidarizar-se com os Estados Unidos no 11 de Setembro [de 2001], de ter livrado a cara do Obama na questão da Síria – ele ia se enterrar lá como os Estados Unidos se enterraram no Iraque – e ser o interlocutor para o desarmamento do programa nuclear do Irã. O Putin é hoje um protagonista no cenário internacional que não dá para desconhecer.
Era inimaginável para esses assessores do Obama que pegar a Ucrânia, pegar a Crimeia, é bater na porta da Rússia. Jamais o Putin ia aceitar uma coisa dessas. Especialmente porque na Crimeia existem bases navais russas, as únicas que dão acesso ao Mediterrâneo e dão acesso a Europa, Ásia, África.
Negociação com nazifascistas
L.P. – Não sei se é burrice ou estupidez começar uma briga por causa de uma coisa dessas. Ainda se você tivesse no novo governo da Ucrânia gente confiável… São nazifascistas. A Rússia está se recusando a fazer entendimentos com o governo da Ucrânia, coisa que o [John] Kerry estipulou como condição para prosseguir as negociações. Eles jamais vão conversar com esses caras. Confiar em garantia deles de que não vão romper o acordo de leasing para a Rússia usar as bases não dá. Seria de uma ingenuidade imperdoável.
E é ignorar o que os alemães fizeram lá na Segunda Guerra.
L.P. – Esse cidadão que comandou em 22 de fevereiro a recusa em assumir o compromisso que havia sido feito pelo [Viktor] Yanukóvych, por intermediação da Polônia, da França e da Alemanha, Oleg Tyahnybok [nota: o nome da pessoa mencionada é Dmitro Yarosh], é membro de um agrupamento de direita, Svoboda, que tem como figura simbólica o cara que juntou tropas para lutar contra a União Soviética na Segunda Guerra Mundial, Stepan Bandera.
O primeiro-ministro, Arseniy Yatsenyuk, parece que é um ex-banqueiro mais moderado da direita, mas os outros, a quem foram entregues inclusive postos-chave da Defesa, segurança interna e a procuradoria-geral, são todos da extrema-direita nazifascista. Isso não é coisa que os russos estão dizendo. Todo mundo sabe.
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