Diante dos gritos “A verdade é dura, a Globo apoiou a ditadura!”, que se ouvem nos protestos de rua, a reação esperada de um grande órgão de imprensa seria: 1) ignorar a provocação; 2) desmenti-la; 3) tentar justificar-se.
No domingo passado [1/9], as Organizações Globo surpreenderam ao não fazerem nada disso. O jornal O Globo publicou um editorial no qual reconhece que o apoio dado ao golpe militar de 1964 foi um erro.
“De fato, trata-se de uma verdade, e, também de fato, de uma verdade dura”, admite o jornal. O editorial cita o contexto da época – Guerra Fria, radicalização do governo João Goulart e a promessa dos militares de que seria uma “intervenção passageira” – para justificar o apoio dado ao golpe, chamado por muito tempo de “revolução”.
O Globo fez questão de sublinhar que, ao concordar com a intervenção militar, estava “ao lado de outros grandes jornais, como O Estado de S. Paulo, Folha, Jornal do Brasil e o Correio da Manhã. De fato, dos grandes periódicos, só a Última Hora, de Samuel Wainer, ficou ao lado de João Goulart.
Só que o Globo deu apoio à ditadura praticamente até o fim, o que o jornal admite, embora ressalve que “sempre cobrou (…) o restabelecimento, no menor prazo possível, da normalidade democrática”.
“O Globo não tem dúvidas de que o apoio a 1964 pareceu aos que dirigiam o jornal e viveram aquele momento a atitude certa, visando ao bem do país. À luz da história, contudo, não há por que não reconhecer, hoje, explicitamente, que o apoio foi um erro, assim como equivocadas foram outras decisões editoriais do período que decorreram desse desacerto original”, diz o texto divulgado na internet e na TV.
O futuro
É a primeira vez que se vê tamanho ato de contrição na imprensa brasileira. Trata-se do principal conglomerado de mídia assumindo um erro editorial – não de informação – sobre um momento decisivo da história recente do país.
A Globo tinha ensaiado algo semelhante ao incluir no livro Jornal Nacional, a notícia faz história (2004) avaliações que pretendiam refutar duas acusações que pesam sobre a emissora: a de que fez uma cobertura pífia dos comícios que pediam as Diretas-Já e a de que favoreceu Collor na edição do debate presidencial com Lula em 1989.
A diferença é que nesses casos havia mais explicações visando afastar imputações de má-fé do que admissão de erros, num tom muito diferente do assumido agora.
A Folha, o jornal mais aberto a críticas e o único, entre os grandes, que mantém um ombudsman, nunca fez algo parecido.
Por ocasião da polêmica em torno do termo “ditabranda”, em 2009, publicou apenas uma nota em que dizia que o uso da expressão em editorial tinha sido um erro. “O termo tem uma conotação leviana que não se presta à gravidade do assunto. Todas as ditaduras são igualmente abomináveis”, dizia a nota, cujo título – “Folha avalia que errou, mas reitera críticas” – mostrava que o jornal estava fazendo a correção meio a contragosto.
O estrondoso mea-culpa global, que ocupou quase três minutos do Jornal Nacional, foi impulsionado pelos protestos de junho. O texto que introduz o editorial “1964” assume isso, ao dizer que “governo e instituições têm, de alguma forma, que responder ao clamor das ruas”.
Não importa tanto se há interesses outros nessa autocrítica, feita às vésperas dos 50 anos do golpe, ou se havia muito mais para ser dito. O principal é perceber que se está dando uma satisfação ao público, que hoje, graças às redes sociais, tem uma capacidade inédita de expressão – e de pressão.
É um primeiro passo no longo caminho para a transparência, que passa pelo respeito ao “outro lado”, pela obsessão com o equilíbrio, pelo reconhecimento rápido dos erros cometidos e por canais que permitam uma crítica constante.
Quem sabe “o futuro já começou”, como diz o slogan de fim de ano da emissora.
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Suzana Singer é ombudsman da Folha de S.Paulo