Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Favoráveis à evolução humana?

Triste, a leitura do artigo ‘A Força dos Estereótipos’, escrito por Hélio Schwartsman (Folha de S.Paulo, 6/5/2007, ler abaixo). Sua argumentação tomou rumos equivocados e terminou em uma conclusão desastrosa, a de que os preconceitos podem ser favoráveis à evolução humana, gostemos ou não. É preciso dizer claramente: preconceitos e estereótipos são coisas ruins e geram uma sociedade desigual e violenta. Não há exceções. Pior ainda é quando o preconceito se insinua pela palavra de quem tem poder e meios para formar opinião.

O equívoco começa quando o articulista confunde conceito com preconceito e protótipo com estereótipo. Vamos explicar isso melhor.

Interessa ao campo das ciências cognitivas, incluídas nelas a psicologia empírica e cognitiva de Steven Pinker, investigar como se formam os conceitos na mente de uma pessoa. Uma das teorias de formação de conceitos é a dos protótipos. Nela, assimilamos, por exemplo, a palavra cadeira a um determinado objeto de nossa mobília porque aprendemos primeiro uma forma prototípica de cadeira, aquela de madeira, com quatro pés, encosto e assento, de onde podemos fazer derivações e concluir que um objeto metálico de três pés que se abrem a partir de um eixo, e sobre eles uma concha plástica para se sentar, também é uma cadeira. Essa formação de conceito a partir de um protótipo é baseada em evidência e com freqüência está correta. Mas isso se refere ao campo psíquico do indivíduo.

Totalmente diferente é a formação de um preconceito a partir de um estereótipo. Enquanto o conceito é um evento cognitivo do indivíduo, o preconceito é uma criação coletiva, enraizada na cultura e nada tem a ver com evidência ou realidade. Ainda que exista uma ponte estabelecida pela linguagem entre os esquemas cognitivos individuais e valores sociais, não se pode transportar impunemente um mecanismo de um lado ao outro. Estereótipo e preconceito têm suas origens no imaginário coletivo. São criações de ideologias que se impõem como forma de manutenção do poder de minorias. Isso não faz o ser humano evoluir, ao contrário, é instrumento de alienação e dominação.

Umbandistas são demoníacos

Se os preconceitos tivessem um fundo de verdade, então teríamos que admitir que nossos mestiços são realmente preguiçosos e indolentes como Macunaíma; ou que índios e negros são inferiores aos brancos, pois sequer tinham alma até que essa fosse reconhecida pelos jesuítas. Esqueçamos, portanto, as políticas de cotas e qualquer outra medida que vise a corrigir injustiças sociais históricas. Muitos outros exemplos poderiam ser citados, mas não há porque abrir feridas que temos nos esforçado para curar.

Não consegui acesso à pesquisa do Datafolha. Mas suspeito que o colorido do texto tenha vindo mais do autor que dos dados. Às vezes, como disse Dilthey, o autor se revela mais do que o supõe. Não se pode comparar o eufemismo de ‘católico relapso’ com a truculência de ‘evangélico trouxa’. E se é para falar de escândalos sexuais, porque não citar os escândalos de pedofilia de padres católicos nos Estados Unidos? Parece que dá para perceber para que lado pende o ‘fiel’… da balança.

Evidentemente, nesse texto preconceituoso, senão premeditado, não faltaria o golpe de misericórdia sobre os excluídos: os umbandistas são demoníacos. Sempre os pobres umbandistas. É preciso compreender de onde surge o viés das estatísticas e a quem interessam as perguntas. Basta dizer que pelo último censo do IBGE, no estado da Bahia, maior representante do candomblé no país, apenas 0,11% se declararam adeptos dessa religião (IBGE-2000). Isso significaria dizer que pouco menos de 15 mil baianos freqüentam os terreiros e casas de candomblé do estado. Tal é a força do domínio cultural e opressão sobre os excluídos ainda existente no Brasil.

Nossa evolução real depende do combate ativo a toda e qualquer forma de preconceito ou estereótipo. Depende também das pessoas que escrevem em veículos de massa aprenderem a avaliar melhor o peso de suas palavras.

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Força dos estereótipos

Hélio Schwartsman # copyright Folha de S.Paulo, 6/5/2007

‘Triste época! É mais fácil desintegrar um átomo do que um preconceito.’ A boa frase é de Albert Einstein, que, como sempre, estava quase certo.

Quebrar um estereótipo é tão ou mais difícil que fragmentar um átomo porque o homem interpreta o mundo através de categorias, que são só um nome neutro para preconceito. Pior, os estereótipos que usamos são com freqüência corretos.

Não estou dizendo que todo católico é relapso, e evangélico, trouxa. O mecanismo mental que constrói categorias o faz em cima de características médias ou percebidas como tal de classes de objetos ou pessoas. Ou, como diz o psicólogo Steven Pinker em ‘Tábula Rasa’: ‘Se anda como um pato e grasna como um pato, provavelmente é um pato. Se é um pato, provavelmente nada, voa…’.

Quem, contudo, aplica irrefletidamente os atributos gerais a sujeitos particulares corre risco de quebrar a cara -um pato com asa ferida não voa, mas não deixa de ser pato.

Estereótipos religiosos tendem a refletir, não verdades, mas características que são ou foram freqüentes entre membros do grupo. Católicos estão entre os primeiros a admitir que não são muito católicos em seu catolicismo. Concordam que ‘os católicos não praticam sua religião’ 61% dos entrevistados; entre católicos, 58%.

A noção de que os evangélicos são enganados por pastores (aceita por 61%) tampouco veio do nada. Nos anos 70, os pastores americanos que pregavam pela TV fizeram sucesso e enriqueceram. Nos anos 80, alguns, como Jimmy Swaggart e Jim Bakker, foram pegos em escândalos sexuais. E isso reavivou o tema do pregador hipócrita.

E agora, a cada prisão de líder evangélico, reforça-se o estereótipo, que é bem-aceito por evangélicos. Como ninguém gosta de admitir que se deixa iludir, os que concordaram devem ter pensado nas pobres almas da seita rival, mostrando que ser vítima de preconceito não é vacina contra tê-lo.

A idéia de que judeu só pensa em dinheiro (com a qual 49% concordam) tem origem na Idade Média, quando as poucas cidades que aceitavam judeus relegavam-nos a funções tidas por inferiores, como coleta de impostos e empréstimo de dinheiro. A associação entre judeus e dinheiro ficou. Já a ‘vingança’ veio na forma de bancos como Rothschild e Safra.

Vincular muçulmanos a terrorismo (49% de concordância), o que se insinua desde os atentados da OLP nos anos 70, ganhou impulso após o 11 de Setembro. Mas, se se perguntar a um muçulmano, é quase certo que ele negará apoiar o terrorismo. Já se a questão for ‘Considera legítima a resistência contra o opressor americano e a entidade sionista?’, o número de ‘sins’ sobe. É que situações de conflito tornam estereótipos em relação à parte contrária mais virulentos, e inexatos.

Os umbandistas são acusados de ter parte com o demônio (tese com 57% de aceitação) desde que o primeiro escravo foi por aqui descarregado e se cristianizou, incorporando elementos da religião de origem. Cultos estabelecidos não gostam de concorrência e menos de ‘agentes duplos’ entrincheirados em suas naves.

É certo que estereótipos são fonte das piores chagas, como racismo, sexismo e toda forma de intolerância. Só que o preconceito, entendido como a operação mental que nos permite abstrair e generalizar, é um dos responsáveis pelo sucesso evolutivo da humanidade e a base do conhecimento científico. Isso não significa que toda a generalização na cachola seja válida. Muitas não serão. Mas a natureza não liga se a idéia que me deixa afastado de inimigos é justa, desde que eu fique longe deles e sobreviva.

Problema não é usar preconceitos para interpretar o mundo, mas o fato de que muitos de nós se recusam a abandoná-los mesmo quando desmentidos por evidências e contrários a imperativos morais.

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Professor da FTU – Faculdade de Teologia Umbandista