Meus caros leitores do Observatório da Imprensa. Cada um de vocês sabe muito bem que o espírito desarmado é típico desta época do ano. É cíclico. Sazonal. Um cacoete ritual. Uma afetação inofensiva. O que vem provar que até mesmo a nossa ideologia pode ser regida pelas estações do ano. Pensando melhor, espírito desarmado não é uma boa expressão. Quando desembocamos nesse terço final de dezembro, mais do que desarmado, o nosso espírito se arma de gentilezas (mesmo entre os mais rudes), votos de boa fé (entre os mal-intencionados), declarações de amizade eterna (que dão polidez às inimizades), e assim nos embriagamos da ilusão de que a humanidade irá sucumbir a uma confraternização infinita e definitiva.
É uma ilusão apenas e, sendo ilusão, tem um quê de prazerosa. Então, olhamos uns para os outros e proclamamos: tudo de bom para você, para a sua família, tudo de bom para todos nós. A onda se espalha. Chega aos lugares mais inóspitos. Onde há povos em guerra, vem o cessar-fogo de Natal. Nesta época do ano a gente baixa a guarda, deixa de atirar e aí, festeja. Dificilmente levaremos um tiro nas costas. Dificilmente (mas acontece). A gente esteja como puder, com o que tem à mão. Próspero ano novo, guerreiros. No ano que vem vocês abrem fogo outra vez.
Isso aí. No final de dezembro, damos um tempo. Entramos em férias coletivas. Outros, em recesso. No fundo, no fundo, mergulhamos na trégua como quem sai das trevas. Nada demais. Logo depois, a guerra marcará seu retorno.
Duas correntes
Quem escreve para este Observatório sabe muito bem: isto aqui é uma trincheira de guerra. A gente leva tiro de todo lado. Uns passam de raspão na orelha, outros nos acertam a testa. A gente cai. É assim durante os doze meses do ano. Portanto, quero aproveitar o armistício e desejar a todos um Feliz Natal e um próspero Ano Novo. Que cada um ganhe de presente o que pediu a Papai Noel. Que tenha saúde. Que alcance a realização dos sonhos. Que sejamos todos felizes. Nem que seja por alguns dias. Estou falando do fundo do coração, mas o fundo do nosso coração não é uma instância muito confiável.
Montei uma árvore de Natal na sala de casa. Mal não há de fazer. Comprei luzinhas que devem ser chinesas por R$ 4,90. São 100 lâmpadas multicoloridas que piscam sem parar. Meus filhos gostaram. Vejo a televisão (eu sempre vejo a televisão). Ela parece inchada, sobrecarregada de mensagens natalinas. As oficiais, principalmente. A mais desabrida é uma do governo estadual, embora a prefeitura e o governo federal não deixem por menos. Essa do governo estadual diz que o metrô e os transportes públicos estão melhorando em alta velocidade e que, ao conceber tantas e tão monumentais melhorias, o governo pensou no jeito de caminhar do ‘Seu João’, na necessidade da Fulana, no tempo do Sicrano… Só não diz que pensou também na candidatura de José Serra, mas isso não importa. Estamos todos de bem.
Outra propaganda, esta de um banco, mostra cenas de fraternidade com as várias coreografias das mais diversas religiões, como se o dia 25 de dezembro fosse data sagrada para budistas, taoístas ou judeus. Mais um traço clássico da ideologia: supor e fazer supor que a agenda supostamente nossa é supostamente a agenda do mundo inteiro. De novo, não importa. Estamos em congraçamento ecumênico. Mesmo que fajuta.
Nada como um respiro de paz para pensar sobre a natureza da guerra. Nada como um tempo de paz, aqui no Observatório, para ver com mais calma os parâmetros que conformam as diversas correntes de opinião que aqui têm o hábito de se bater. Melhor dizendo, não são tão diversas assim: essas correntes são basicamente duas: uma que é contra a imprensa – contra os principais órgãos de imprensa em atuação no Brasil – e a favor do governo federal – ou melhor, é a favor do governo naquilo que ele tem contra a imprensa, aqui e ali. Quando surge um atrito ou uma crítica vinda do Planalto, essa primeira facção logo trata de fechar com o poder. A outra ala, que me parece minoritária, é sistematicamente contra o governo Lula. Qualquer baixaria em jornais e revistas que agrida o Executivo federal recebe aplausos incondicionais.
Corrida eleitoral
Digo essas palavras num tom ameno. Que ninguém levante a faca, por favor. Jingle Bells, Noite Feliz, deixei meu sapatinho na janela do quintal etc. O animus natalino não foi revogado pelo parágrafo anterior. Apenas me ocorre que, agora, quem sabe, a gente consiga refletir um pouco sobre polarizações ensandecidas sobre as quais é impossível conversar nos meses normais.
Meu ponto é bem simples: muitas vezes um certo irracionalismo irado conduz as nossas discussões acaloradas e calorentas. Isso porque o eixo predominante nos debates deste Observatório provém antes do espectro partidário do que da própria natureza da imprensa. Trata-se apenas de saber quem é contra e quem é a favor do presidente da República. Trata-se menos de saber se a conduta jornalística vem se pautando por cânones propriamente jornalísticos; se a reportagem investiga, se opera com independência, se aponta aspectos múltiplos das questões e da notícia.
O que temos visto, normalmente, é uma disputa plebiscitária, que pode ser vista por dois lados que se completam. O primeiro lado é o do linchamento da imprensa. O segundo é o da condenação do governo. Quanta pobreza.
Na segunda-feira (21/12), bem a propósito, vi na Folha Online um comentário do presidente da República sobre o período eleitoral que se avizinha: ‘Seja com Serra ou com Aécio, a estratégia montada vai ser a mesma. Nós queremos é uma campanha polarizada com dados comparativos dos dois governos’ (‘Serra rebate Lula e diz ser possível dois craques no mesmo time‘, 21/12/2009 – 17h04). Lula quer a polarização. E a imprensa? Será que a ela interessa a mesma coisa?
Creio que não. Creio que não, mas isso não adianta nada. Caminhamos para uma disputa entre dois pólos. Marcharemos para uma rinha plebiscitária: o governo FHC será comparado ao governo Lula. Não há muito como escapar. Essa comparação pode até ser legítima, é direito dos políticos e dos eleitores avaliar a realidade por esse prisma. Do ponto de vista da imprensa, no entanto, o desafio é saber se ela será ou não será capaz de cobrir essa disputa. Esse é o ponto. Ela não deverá estar de um lado ou de outro, mas terá de informar sobre os dois e, mais ainda, terá de informar sobre os movimentos da corrida eleitoral – ou, se preferirem, terá de dar à sociedade as notícias da guerra.
Mocinhos e bandidos
Tenho dúvidas, muitas dúvidas, sobre a nossa capacidade, aqui, no Observatório, de acompanhar criticamente os movimentos da imprensa em 2010. Em grande parte, essas dúvidas se devem à qualidade dos debates que temos aqui. Polarizados como já estão, eles cobram o apoio ou a oposição ao governo. Não cobram a informação objetiva. Desse jeito, fica difícil.
Para muitos dos nossos leitores, a imprensa, em bloco, sem nuances nem sutilezas, já atua como partido político. Mais ainda: um partido político de oposição. Na opinião desses muitos, a função social de informar com independência e objetividade já está perdida; não há mais o que fazer; só o que resta, agora, é derrotar a oposição e, de quebra, derrotar também a imprensa – esse monólito compacto e indivisível cuja única obsessão é desmoralizar o presidente. Ponto.
Essa visão, que optou por não enxergar as contradições intrínsecas da instituição da imprensa, vê na própria instituição da imprensa uma força retrógrada a ser torpedeada. Integralmente. Para os que se filiam a tais correntes, a simples idéia de que as redações devem ser – ainda que não consigam ser – independentes é apenas uma história da carochinha, ou, ainda melhor, é apenas uma historinha de Papai Noel. Na melhor das hipóteses, idealismo. Na pior, má fé. Como acreditam que não existe independência, alardeiam que só o que existe é um embuste para enganar otários, garantem que a imprensa é um teatro de classe para defender os interesses da burguesia.
Com isso, transplantam para dentro dos debates da imprensa a lógica partidária mais rasteira e, desse modo, inviabilizam debates qualificados. Não se dão conta, mas vivem, ainda hoje, sob os efeitos de antigas miragens – que já eram miragens no século 19. Também por isso, não divisam contradições no próprio governo, no Estado, nos movimentos sociais. Vêem o mundo como um duelo melodramatizado dos mocinhos contra os bandidos. Quer dizer: não vêem o mundo, mas apenas o teatro imaginário que projetam sobre as paredes móveis do mundo.
Em paz
Com freqüência, esses setores atacam meus artigos dizendo que eu fico ‘em cima do muro’, que não tomo partido. Mas, convenhamos, de que partido eles falam? Dos partidos políticos? Será que a imprensa – ou o pensamento sobre a imprensa, que seja – deve cerrar fileiras com partidos políticos para, aí sim, declarar de peito estufado que tem posição clara? Será que o esquadro da disputa eleitoral é o mais adequado para medir a fidelidade da imprensa à sua missão? Não lhes ocorre que entre PT e PSDB, a imprensa deve ficar com o partido dos fatos e da crítica independente? Não ocorre a eles que o partido dos fatos e da crítica independente não se resolve dentro da lógica do PT ou da lógica do PSDB? A isso, à busca da independência, eles chamam, com malignidade, de ‘ficar em cima do muro’. Erram tragicamente. E erram aos berros.
Mesmo assim, vão aí, despidos de quaisquer outros interesses, meus votos de um feliz e próspero Ano Novo. De coração. Que em 2010 este Observatório e seus leitores amadureçam para tomar de uma vez por todas o partido da liberdade. Sem mais adjetivos. Essa é a pedra fundamental que devemos cobrar da imprensa: liberdade. Que venha uma eleição polarizada, como quer o presidente, não importa. Se tivermos uma imprensa livre, poderemos acompanhar os acontecimentos com mais informação e mais senso crítico. Ganhe quem ganhar, não faz diferença. Aos olhos dos jornalistas, o que importa é que o eleitor esteja bem informado, que disponha dos dados necessários para formar livremente a sua opinião e a sua vontade.
No mais, a imprensa é uma engrenagem complexa, feita de muitas vozes dissonantes, e ainda bem que é assim. Que assim seja, cada vez mais. Para sorte dos leitores, dos eleitores, dos jornalistas e de todos nós que freqüentamos este Observatório. Fiquemos em paz, por apenas alguns dias. E tentemos nos valer da paz para refletir um pouco.
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Jornalista, professor da ECA-USP