Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Folha de S. Paulo

ECOS DA DITADURA
Rubens Valente

Governo dos EUA sabia de tortura no Brasil

‘Documentos secretos do serviço diplomático americano no Brasil do biênio 1973-1974, liberados ao público após 32 anos, revelam que a administração do presidente Richard Nixon (1969-1974) foi informada em detalhes sobre as torturas e os abusos contra direitos humanos na ditadura, mas não tornou os fatos públicos.

A pressão americana contrária aos abusos só passou a ocorrer na administração de Jimmy Carter (1977-1981). Entre 1974 e a posse de Carter, foram mortos ou considerados desaparecidos pelo menos 89 militantes da esquerda no Brasil.

Num dos telegramas liberados, intitulado ‘Presos Políticos’, o embaixador em Brasília, John Hugh Crimmins, hoje com 87 anos e vivendo em Maryland (EUA), recomendou que o governo Nixon não usasse contra o governo brasileiro o art. 32 da Lei de Assistência ao Estrangeiro, embora o próprio relatório reconhecesse que isso era legalmente possível.

Por essa regra, os EUA poderiam cortar créditos financeiros ao Brasil em retaliação a supostos abusos contra direitos humanos. Na época, os EUA financiavam programas de cooperação militar e de combate a narcóticos. ‘Negar assistência não faria [fará] com que o Brasil mudasse de idéia ou abandonasse seus esforços de segurança interna na esperança de reconquistar nossas boas graças; levaria [levará] um Brasil indignado a rejeitar de vez quaisquer esforços dos EUA para melhorar a situação’, escreveu Crimmins em seu relatório de 1974.

Dois meses após a primeira recomendação, Crimmins bateu na mesma tecla. Num longo telegrama -de 15 páginas- intitulado ‘Avaliação do embaixador sobre assistência de segurança dos EUA’, ele fala em manter todos os programas de ajuda ao Brasil com a estratégia específica de ‘influenciar a política brasileira’.

‘O programa norte-americano de assistência à segurança do Brasil é uma ferramenta essencial aos nossos esforços de influenciar a política brasileira. O programa vem sendo efetivo em começar a restabelecer os EUA como fonte primária de equipamento, treinamento e doutrina para as Forças Armadas do Brasil. Interessa-nos muito, porém, consolidar e expandir nossos ganhos recentes na provisão de equipamento militar ao Brasil’, afirma.

Os telegramas mostram que de fato o assunto ‘direitos humanos’ tinha ínfimo espaço nas relações diplomáticas entre Brasil-EUA. Num relatório de seis páginas que narrou um almoço ocorrido em 28 de setembro de 74 entre o então secretário de Estado norte-americano, Henry Kissinger, e o ministro das Relações Exteriores brasileiro, Antônio Francisco Azeredo da Silveira (1917-1990), o tema mereceu apenas um parágrafo, e assim mesmo na forma de uma crítica do governo brasileiro: ‘Direitos humanos. O ministro do Exterior advertiu que os Estados Unidos podem estar ‘desmoralizando’ os direitos humanos ao torná-los uma questão política’.

A ‘costura’

Os telegramas demonstram que os americanos tinham fontes no aparelho da repressão que podiam até mesmo oferecer narrativas dramáticas sobre assassinatos a sangue-frio.

‘Outra fonte, informante profissional e interrogador que trabalha para o centro de inteligência militar em Osasco (subúrbio industrial de São Paulo), nos contou em 24 de abril sobre suas atividades ‘contra-subversivas’. (…) Ele também fez um relato em primeira mão sobre a morte de um suspeito de subversão, o que ele designou como ‘costurar’ o suspeito, isto é, disparar uma arma automática contra ele formando uma trilha de balas da cabeça aos pés. (Maiores detalhes em memorando de 26 de abril sobre essa conversação.) Ao longo do ano passado, diversas autoridades de segurança confirmaram que suspeitos de terrorismo são mortos como procedimento padrão. Estimamos que até 12 tenham sido mortos na região de São Paulo, no último ano’, diz o telegrama de maio de 73, um ano antes das recomendações do embaixador Crimmins.

O nome desse assassino, se em algum lugar foi anotado, não consta dos papéis liberados. O autor do telegrama foi o cônsul americano em São Paulo Frederic Chapin, morto por câncer aos 59 anos, em 1989.

Chapin também relatou uma onda de violência desencadeada pela ditadura contra integrantes do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), fundado em 1969 por um grupo de professores, entre os quais o ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso (PSDB).

O relatório tem como foco a prisão do economista Paul Singer, pai do atual porta-voz da Presidência da República, André Singer.

‘Outro membro do Cebrap (…), Vinícius Caldeira [Brant, sociólogo, morreu em 1999], foi detido em 19 de setembro, pouco depois de Singer, e severamente torturado por choques elétricos, naquela noite. Singer disse ter ouvido gritos, naquela noite, e que depois foi informado de que se tratava de Caldeira’, escreveu Chapin.

O autor da maioria dos telegramas foi o então embaixador, Crimmins. Localizado por telefone pela Folha, disse que não gostaria de se manifestar sobre seu trabalho como embaixador no Brasil (1973-1978).

‘Não li os documentos que acabaram de ser liberados. Então não posso comentá-los em detalhes, especificamente, depois de 30 anos’, disse Crimmins. Indagado se gostaria de receber cópias, o embaixador disse que não, e que no momento estava muito ocupado e precisava desligar o telefone.

Procurada, a Embaixada norte-americana em Brasília não havia se manifestado até a noite da última sexta-feira.’

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Mortos pelo regime militar somam 376

‘O regime militar foi instaurado por meio de um golpe em 31 de março de 1964 contra o então presidente João Goulart (PTB).

De 1967 a 1974, grupos de esquerda se engajaram na luta armada contra a ditadura. Nesse período se concentram as mortes e desaparecimentos de integrantes de grupos de esquerda, assim como as vítimas de ações da guerilha.

Ao todo, 376 teriam sido mortas pelo regime militar, somando-se as vítimas apontadas pelo Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos e pela Comissão Especial de Reconhecimento dos Mortos e Desaparecidos Políticos. Os críticos dos grupos de esquerda, por sua vez, afirmam que estes mataram 119 pessoas em confrontos ou atentados entre 1964 e 1974, dos quais 43 civis.’

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Ministro ordenou censura e vigilância sobre Lacerda

‘Ministro da Justiça na ditadura militar entre 1974 e 1979, Armando Falcão identificava o jornalista e ex-governador da Guanabara Carlos Lacerda (1914-1977) como uma ‘contínua ameaça’ ao regime.

Dez anos após ter apoiado o golpe de 64 e na oposição desde 1965, em 1974 Lacerda estaria usando a Revolução dos Cravos em Portugal, ocorrida em abril daquele ano, para aumentar sua oposição à ditadura, principalmente por meio de artigos na imprensa. Por isso, o governo militar ordenara uma ‘severa vigilância’ sobre Lacerda.

Os militares ‘requisitaram’ ao jornal ‘O Estado de S. Paulo’ que parasse de publicar artigos de Lacerda -os artigos, porém, continuaram até 1975.

As ações de Falcão e dos militares contra Lacerda foram reveladas pelo próprio ministro numa audiência ocorrida em seu gabinete em 30 de maio de 74. Constam de um telegrama despachado de Brasília pelo então embaixador americano em Brasília, John Hugh Crimmins.

Para o filho de Lacerda, o editor de livros Sebastião Lacerda, 64, o documento comprova a perseguição do Estado contra seu pai: ‘É um documento que resume e coloca por escrito, de uma forma oficial, uma coisa que se sabia à época’.

Localizado na última terça-feira pela Folha em sua casa, no bairro da Aldeota, em Fortaleza (CE), Armando Falcão, 87, repetiu o bordão com o qual respondia a perguntas incômodas: ‘Eu não tenho nada a declarar’. Disse também não se lembrar da reunião com Crimmins. Em Maryland (EUA), o ex-embaixador também não quis dar declarações.

Na época do telegrama, Carlos Lacerda também escrevia para o ‘Jornal do Brasil’. No início de 74, o JB parou de publicar artigos de Lacerda a pedido da ditadura, segundo uma testemunha da orientação cujo nome pediu não ver publicado.

Em 1966, Lacerda e os ex-presidentes Juscelino Kubitschek (1902-1976) e João Goulart (1919-1976) articularam a chamada ‘Frente Ampla’ de oposição à ditadura. A morte dos três num curto espaço de tempo -de 22 agosto de 1976 a 21 de maio de 1977- deu margem a teorias conspiratórias nunca comprovadas sobre um plano da ditadura para eliminar os oposicionistas.

Na reunião de 74 descrita pelo embaixador, Falcão disse que a oposição, notadamente Lacerda, estava fazendo um paralelo entre a situação brasileira e o levante de oficiais que tomaram o poder em Portugal no dia 25 de abril daquele ano -a ‘Revolução dos Cravos’.

‘Armando Falcão disse que o levante em Portugal surgiu em um momento muito desfavorável para o Brasil, já que os oponentes do regime Geisel estão procurando usar a situação portuguesa para fins de política interna. Outro elemento incômodo é que o Brasil precisa tomar decisões de política externa que o país teria preferido adiar’, escreveu o embaixador.

Falcão também manifestou a Crimmins grande preocupação com sua própria segurança e narrou a existência de um suposto plano ‘terrorista’ para matá-lo. Segundo o embaixador, Falcão fora informado de que o jornalista Franklin Martins, que em 1969 participara do seqüestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick, havia retornado ao Brasil, via Uruguai, ‘com o objetivo de assassinar Falcão’.

Franklin Martins, hoje jornalista da Rede Band de TV, negou que, em algum momento de sua militância de esquerda, tenha planejado matar autoridades. ‘Esse relatório, pelo menos na parte que me toca, revela o grau de confusão, paranóia e devaneio das autoridades. Naquela época, eu é que devia estar com medo de Falcão’, disse Martins.’

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Lei de liberdade de informação data de 1966

‘A Lei de Liberdade de Informação (Freedom of Information Act, ou Foia), que permitiu a liberação desses documentos, foi assinada pelo presidente democrata Lyndon Johnson em 1966 e permite que qualquer pessoa tenha acesso a documentos federais. A lei foi atualizada no governo de Bill Clinton.’

Mônica Bergamo

Egydio relata suspeita sobre Herzog e faz crítica a d. Paulo

‘Às vésperas de completar 80 anos, o ex-governador de SP, Paulo Egydio Martins, lançará em março um livro de memórias sobre sua participação política no período militar.

Paulo Egydio fez parte da conspiração que levou ao golpe de 1964, foi ministro da Indústria e Comércio do governo Castello Branco (1964-1967) e governador de SP entre 1975 e 1979, período em que Ernesto Geisel era o presidente.

No governo de SP, viveu crises como as das mortes do jornalista Vladimir Herzog e do operário Manoel Fiel Filho no DOI-Codi em SP, e deu posse a Lula na presidência do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo. Paulo Egydio é filiado ao PSDB, mas está afastado da política e hoje preside a ItauCorp, holding do grupo Itaú.

O livro é resultado de um depoimento de 600 páginas do ex-governador ao CPDOC-FGV, o centro de pesquisa e documentação histórica da Fundação Getúlio Vargas.

VLADIMIR HERZOG

O ex-governador afirma que desconfiou desde o primeiro dia da tese do regime de que o jornalista se suicidou. E diz que houve ‘outro fato’ sobre o qual é ‘obrigado’ a depor ‘perante a história’. Pouco depois da morte de Herzog, o cônsul inglês em SP, George Hall, teria dito a ele: ‘Você sabe qual foi a última pessoa que o Herzog viu antes de morrer? Foi a mim. Herzog prestava serviços para o Serviço Secreto inglês’.

‘Achei aquilo absolutamente estapafúrdio, mas ele era um homem que parecia equilibrado’, diz Egydio, ressaltando que não está ‘afirmando que Herzog tenha realmente sido do Serviço Secreto inglês’, mas apenas ‘contando o que o George Hall me comunicou’. O diplomata inglês, que também foi embaixador no Brasil, faleceu em 1980. Segundo Egydio, teve ‘morte súbita’. ‘Alguma coisa esquisita ocorreu. Para mim é um mistério até hoje.’

Clarice Herzog, viúva de Herzog, diz que ‘essa história é absurda, uma invencionice que não tem pé nem cabeça. O Vlado nunca teve envolvimento político na vida dele, era um intelectual. Entrou no PCB pouco antes de morrer’. Para Clarice, ‘é até uma afronta ele [Egydio] contar uma história dessas sendo que nenhum dos envolvidos está aqui para desmenti-lo’. Ela diz que Herzog saiu de casa direto para o DOI-Codi, local a que cônsul algum tinha acesso: ‘Um dos dois [Egydio ou Hall] é louco ou mentiroso’.

LULA

Em 1975, Paulo Egydio deu posse a Lula na presidência do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo. ‘Isso provocou uma reação da chamada comunidade de informações’, diz. Geisel teria perguntado ‘o que deu na cabeça’ de Paulo Egydio. Ele explicou que Lula era adversário dos comunistas. Geisel relaxou: ‘Mas eu não sabia que ele tinha derrotado os comunistas’. Segundo Egydio, Golbery do Couto e Silva, da Casa Civil, manobrou para ‘atrair’ Lula para a política. Golbery ‘temia Lula no sindicato’ e ‘queria que ele fosse para a área política, porque achava que lá ele iria se esfacelar’.

PAULO EVARISTO ARNS

‘Meu desentendimento com d. Paulo Evaristo Arns se deu porque acho que ele foi, de certa forma, uma pessoa vaidosa ao se manifestar para o grande público no que se refere ao problema das torturas’, diz Paulo Egydio no livro. Ele conta que era amigo de Arns e que chegou a atender a um pedido de socorro financeiro feito por ele para a PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Certo dia, d. Paulo ‘botou o dedo na minha cara e disse: ‘Você tem a obrigação, pela sua formação cristã, de dar um paradeiro a esse problema de tortura’. Egydio diz que o cardeal não tinha idéia da crise interna no Exército, mas poderia ter ‘se informado melhor comigo’ antes de criticá-lo.

LINHA DURA

Egydio conta que, numa visita a Fernando de Noronha, foi levado por um militar para um presídio secreto na ilha: ‘Fiquei horrorizado. Era igual a um campo de concentração nazista’. A idéia era levar para lá os presos políticos: ‘Soube depois que a linha dura foi derrotada e o lugar não foi usado’.’

Ferreira Gullar

A Justiça tarda

‘ZÉ PAULO trabalhava na sala de imprensa de um instituto do governo, quando se deu o golpe militar de 1964. Nascido de uma família getulista, simpatizava com o presidente João Goulart e, no sindicato, participava de manifestações de apoio ao governo, especialmente depois que a crise se agravou e o fantasma do golpe militar tornara-se uma ameaça real.

Na noite do dia 31 de março, quando já as tropas do Exército haviam se rebelado em Minas Gerais, reuniu-se com alguns companheiros no sindicato para ver se era possível colaborar na defesa do presidente da República. Sua esperança desvaneceu-se quando o rádio informou que o general Kruel, comandante do 2º Exército, sediado em São Paulo, aderira ao golpe. Na manhã do dia 1º de abril estava tudo consumado. Zé Paulo jurou que não se submeteria aos militares instalados no poder.

Fez o que pôde. Participou de reuniões, colaborou na organização da resistência à ditadura, desenvolveu atividades clandestinas, até que um dos membros da organização foi preso e, sob tortura, entregou os companheiros. A Zé Paulo não sobrou outra alternativa que passar à clandestinidade e, depois, exilar-se.

Seu exílio durou quase dez anos. De volta ao Brasil, desempregado, decidiu recuperar o seu emprego na sala de imprensa do instituto. Como havia sido demitido por abandono de emprego, alegou que, na verdade, fora obrigado, pela repressão da ditadura, a deixá-lo. Seus argumentos foram aceitos, foi reintegrado no emprego, mas não lhe concederam o pagamento dos salários durante o tempo em que esteve afastado.

Seu advogado entrou com uma ação que foi vitoriosa na primeira instância, mas o governo recorreu. O julgamento em segunda instância demorou anos. Perguntou ao advogado se não podia solicitar ao juiz que desse uma decisão.

– Você está maluco. Se eu fizer isso, aí é que ele não decide e, se decidir, será contra nós.

– Mas faz quatro anos que o processo está com ele.

– E pode ficar mais quatro. Não há nada a fazer, senão esperar.

Zé Paulo se conformou. Terminou esquecendo o processo. Finalmente, aposentou-se no instituto, ganhou netos, viajou à Europa, operou a próstata, mudou-se para um sítio em Nova Friburgo. Um belo dia, recebeu um telefonema de Brasília, de uma amiga que trabalhava no STJ.

– Você acaba de ganhar a ação contra o instituto!

Emocionado, ligou para o seu advogado:

– Ganhei mesmo?

– Ganhou. Não cabe mais recurso.

– E quando eu recebo a grana?

– Bem, isso ainda demora… Vão ter que pedir ao instituto que informe quanto você ganhava na época, para calcular quanto deve receber.

Foi feita a solicitação ao instituto que, um ano depois, não havia mandado as informações. Por sorte, Zé Paulo, em conversa com uma amiga, soube que ela era parenta do atual presidente do instituto e, assim, em poucas semanas, as informações estavam nas mãos do juiz, que as encaminhou ao técnico para os cálculos.

Feitos os cálculos e entregues ao juiz, ele demorou dois anos para escrever, no processo, a seguinte frase: ‘Encaminhe-se à Advocacia Geral da União’.

A essa altura, Zé Paulo já ganhara o primeiro bisneto. Como a vista foi ficando turva, teve que fazer operação de catarata no olho direito e, um ano depois, no esquerdo. Um belo dia o advogado lhe telefonou:

– A Advocacia Geral da União rejeitou os cálculos.

– Como assim, não foram feitos por um técnico?

– Isso não importa.

– Escute, diga à Advocacia Geral da União que, a esta altura, aceito qualquer cálculo, a quantia que considerarem justa. Não agüento mais!

O advogado pediu-lhe mais paciência. Não valeria a pena aceitar qualquer proposta, uma vez que, mesmo assim, a coisa não se resolveria logo. Explicou-lhe que, definida a quantia exata que deverá receber, a ordem de pagamento será encaminhada ao Congresso para ser incluída, como precatório, no Orçamento do ano seguinte. Se chegar depois, terá que esperar mais dois anos.

– E aí então será pago?

– Deveria ser, mas, de alguns anos para cá, o governo não paga os precatórios ou paga quando quer.

– Deixa ver se estou entendendo. Passo 29 anos pelejando na Justiça e, depois que ganho, o governo não obedece à decisão judicial, não me paga e fica por isso mesmo?

– É, a menos que você tenha um pistolão nas altas rodas de Brasília.

– Para que então existe a Justiça neste país?

– Será que existe?’



TECNOLOGIA & MÍDIA
David Pogue

iPhone vale mais que soma de iPod e telefone celular

‘DO ‘NEW YORK TIMES’ – Vocês se lembram da fada madrinha, em ‘Cinderela’? Ela apontava com a varinha de condão e transformava um objeto caseiro, como uma abóbora ou um camundongo, em algo glamuroso e estonteante, como uma carruagem ou um cocheiro em uniforme de gala. É óbvio que ela mora em um quarto dos fundos na sede da Apple.

Sempre que Steve Jobs vê alguma máquina imperdoavelmente feia e complexa que está pedindo desesperadamente pelo toque da Apple -como computadores ou tocadores de música-, ele a coloca em ação.

Na semana passada, Jobs mostrou o mais recente produto dos esforços da fada. Atendeu aos pedidos de milhões de devotos seguidores da Apple, e de uma multidão de divulgadores de boatos, e transformou o celular comum no… iPhone.

No momento, o iPhone está em estágio avançado de protótipo, e fui autorizado a brincar com um deles por apenas uma hora. O produto em sua forma definitiva não estará disponível nos EUA antes de junho, e na Europa, até o quarto trimestre.

Por isso, considerem esta coluna como uma previsão, e não como uma resenha.

Uma coisa fica clara desde o começo: o nome iPhone talvez represente um desserviço para a Apple. Ele está tão repleto de possibilidades que as suas funções como celular talvez sejam sua parte menos interessante.

O iPhone representa a fusão de pelo menos três produtos em um mesmo aparelho: celular, iPod de tela larga e sistema sem fio de acesso à internet dotado de tela de toque. Isso ajuda a explicar o preço: US$ 499 ou US$ 599 (dependendo da capacidade de armazenamento).

Como se poderia esperar de um produto Apple, o iPhone é lindo. O revestimento frontal é de um preto brilhante, emoldurado por acabamentos em aço inoxidável polido. A traseira é de alumínio texturizado, interrompido apenas pela lente de uma câmera de dois megapixels e pelo logotipo da Apple. O modelo é um pouco maior e mais largo que um Palm Treo, mas muito mais fino.

Não haverá queixas sobre número excessivo de botões.

Na verdade, ele está muito perto de oferecer botão nenhum. A frente é dominada por uma tela de toque operada com o uso direto dos dedos. Os únicos botões são os de volume, ligar e desligar o alerta sonoro, dormir/acordar. Por sob a tela, há um botão que leva à home page.

A beleza do iPhone por si já bastaria para convencer certos membros do culto ao iPod a apanharem seus cartões de crédito. Mas o software baseado no Mac OS X faz do aparelho não exatamente um celular inteligente, mas sim algo que parece saído do filme ‘Minority Report -A Nova Lei’.

Como no caso de qualquer iPod, procurar músicas e álbuns é divertido, mas não há scroll (barra de rolagem). Em seu lugar, basta mover seu dedo sobre a tela e a lista começa a se movimentar, de acordo com a velocidade do dedo. Quando ele se afasta, o movimento da lista perde lentamente a velocidade e pára, como que por inércia.

Os mesmos movimentos de dedo permitem que você procure fotos ou se movimente entre capas de disco como se elas estivessem em uma prateleira tridimensional.

Assistir a filmes é especialmente agradável. Isso se deve ao formato da tela e ao seu tamanho bem maior (8,9 centímetros) -bem como à maior definição (160 pixels por polegada), que supera a dos antigos modelos de iPod.

Também será possível conduzir conversas em programas de mensagens instantâneas. E, como qualquer celular inteligente, o iPhone pode ser programado para baixar e-mails de qualquer provedor.

Mas o iPhone não dará fim ao BlackBerry. A falta de um teclado físico o torna versátil, mas digitar é tedioso. No lugar de um teclado, há letras em teclas virtuais na tela. Elas são pequenas e não é possível posicionar os dedos pelo tato. Por isso, digitar é lento, especialmente para quem tiver dedos gorduchos.

Felizmente, ninguém precisa se preocupar muito em digitar corretamente. Mesmo que você acione a ‘tecla’ errada por acidente, o software, altamente inteligente, considera as teclas adjacentes e corrige os erros de maneira automática.

A verdadeira mágica, porém, surge no momento de navegar pela web. Pode-se ver toda a página na tela do iPhone, ainda que as letras fiquem pequeninas. Para ampliá-las, basta um toque duplo sobre qualquer ponto de tela e ‘arrastar’ a área ampliada na direção desejada.

Pode-se também usar um recurso novo que a Apple chamou de ‘multitoque’. O usuário desliza o polegar e o indicador juntos (como um beliscão) ou separados pela tela e, ao fazê-lo, a página da web diante dele cresce e diminui em tempo real, como se estivesse impressa em uma folha de látex. O sistema também trabalha com fotos e é muito divertido.

Tudo isso vem regado com o tradicional molho secreto da Apple: simplicidade, inteligência e fantasia. São esses ingredientes, e não os recursos em si, que inspiram tamanha luxúria tecnológica em seus devotos.

Mesmo assim, o iPhone não será o celular inteligente preferido por todos. O preço pode afastar alguns. O fato de o iPhone não ser capaz de abrir documentos do Microsoft Office, ao contrário do Treo, decepcionará outros -ainda que a Apple diga que o aparelho abre arquivos PDF. E haverá quem tenha medo de acumular tamanho patrimônio digital em um só aparelho, que pode ser perdido, roubado ou derrubado.

Além disso, o software ainda não está pronto e muitas questões continuam sem solução.

Será que as canções armazenadas na máquina poderão ser usadas como ringtones? A câmera poderá gravar vídeos? Pode-se usar o serviço Skype, de telefonia via internet?

A essa altura, a Apple ainda não sabe as respostas ou prefere não revelá-las. Mas ela tem chance de redefinir o que é um celular. Quantos milhões de pessoas têm em seus bolsos e bolsas um celular e um iPod, neste momento?

Considerando que para muitas pessoas o celular é o mais pessoal dos aparelhos, quantas delas aproveitariam a chance de substituir os complicados modelos atuais pela aparência e a elegância de um iPod?

A Apple fez a sua parte: incluiu mais recursos em menos espaço, e com mais elegância, do que qualquer fabricante. O resto cabe à fada madrinha. Tradução de PAULO MIGLIACCI’



INTERNET
Juliana Monachesi

Fora de controle

‘A novela sobre a proibição do acesso ao site YouTube, determinada pela Justiça no último dia 5, por conta da exibição do vídeo que mostra a apresentadora Daniella Cicarelli trocando carícias com o namorado numa praia espanhola, trouxe novos elementos para o debate sobre os mecanismos de limite à livre circulação de dados na internet e sobre quem deve ou pode exercê-los.

O veto, determinado por liminar do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo em decorrência de uma ação movida pelo casal, acabou se transformando num grande imbróglio judicial. A Brasil Telecom bloqueou o backbone (infra-estrutura de rede) de saída para os EUA e as reclamações começaram a chover.

Dias depois, o juiz Ênio Santarelli Zulianio voltou atrás e pediu o restabelecimento do acesso ao YouTube, solicitando que as operadoras informassem à Justiça sobre a possibilidade técnica de bloquear apenas parte do conteúdo do site.

Em entrevista à Folha, o professor titular do Departamento de Microeletrônica da Escola Politécnica, da USP, e coordenador do Laboratório de Sistemas Integráveis (LSI) João Antonio Zuffo disse ser contra qualquer ato de censura da internet. Segundo ele, além de o bloqueio de um site não ser uma medida eficaz, já que o conteúdo pode ser redistribuído por meio de milhares de outros servidores, configura um equívoco de atribuição de responsabilidades.

‘Eu vejo o caso particular da Cicarelli como um problema de fonte e destino. Você não pode censurar o meio; e o problema todo é que o Judiciário está pensando em censurar o meio de transmissão, o que é altamente condenável. Qualquer decisão judicial deveria recair sobre o autor das imagens ou, por exemplo, em casos mais graves, como os de pedofilia, também sobre os próprios usuários. Acredito que cada pessoa deva escolher o que acessar e cabe a ela assumir essa responsabilidade’, afirma.

Zuffo é autor de ‘A Infoera’ (1998, ed. Saber), sobre as tendências decorrentes da revolução na informática, e vários outros livros sobre sociedade e economia no novo milênio.

O pesquisador desenvolveu o primeiro circuito integrado (chip) de alto desempenho e baixo custo da América Latina, em 1971, e é responsável pelo desenvolvimento do segundo supercomputador mais potente do mundo. Atualmente, Zuffo trabalha no projeto, coordenado pelo MIT (Massachusetts Institute of Technology), de desenvolvimento do laptop de 100 dólares, pesquisa pioneira para a democratização do uso das novas tecnologias.

O pesquisador compara a importância da internet nos dias de hoje com a invenção da imprensa durante a Renascença, e prevê que vá revolucionar os relacionamentos sociais em questão de 20, 30 anos: ‘Trata-se de um instrumento de informação revolucionário porque tende a nivelar mundialmente o conhecimento de toda a sociedade. Estamos frente a uma revolução cuja profundidade poucas pessoas imaginam’.

Para ele, como os aspectos da vida humana não acompanham a velocidade alcançada pela tecnologia, por isso surgem novos problemas jurídicos, como o do caso YouTube/ Cicarelli. Nesse novo contexto, afirma, ‘o uso de conceitos antiquados, de bloquear simplesmente ou proibir, não é racional. A própria proibição do vídeo no caso particular acaba incentivando a visão dele. Eu nunca gastaria bytes do meu hardware para armazenar esse vídeo, mas muitos adolescentes estão fazendo isso, o que é impossível de controlar, a não ser que você proíba totalmente a internet; mas isso equipararia nosso país a um regime totalitário’, conclui o estudioso.

Bloqueio de conteúdo

Tecnicamente, de acordo com o professor da Poli, o bloqueio de IP pode ser feito com certa facilidade, mas bloquear o conteúdo do IP, ou seja, bloquear apenas o vídeo da Cicarelli, por exemplo, é muito complexo. ‘Para fazer bloqueio de conteúdo, você precisa ter um sistema de identificação de conteúdo e esse sistema normalmente é bastante complexo. Os norte-americanos hoje têm supercomputadores que monitoram palavras-chaves em conteúdo, principalmente por causa do terrorismo.’

Zuffo tem uma postura contrária também ao controle de conteúdo. ‘É uma coisa discutível porque envolve a privacidade das pessoas. Existe toda uma discussão filosófica internacional a respeito, por exemplo, dessa atuação do governo americano.’ O pesquisador não propõe o controle do conteúdo mesmo em casos mais graves, mas sim que, uma vez que esse conteúdo se torna conhecido ou é denunciado, ele seja visto como um caso policial, em que se faz necessário investigar a fonte e o destino de determinada informação.

A regulamentação da internet, se casos como o do bloqueio ao YouTube se repetirem, pode ser catastrófica, na opinião de Zuffo. ‘Isso irá determinar qual vai ser o futuro da humanidade, que tipo de organização política se vai adotar no futuro, porque, se for controlada a quantidade de informação que circula na internet, nós vamos caminhar para um regime ditatorial, pode ser através de um domínio pelo dinheiro, mas, sem dúvida nenhuma, nós caminhamos para um sistema de perda de liberdade’. O professor defende o acesso indiscriminado à internet como fundamental.

Iluminação

Segundo Zuffo, a internet tem que se tornar um bem público como a iluminação, como acontece em cidades como Boston, onde a própria prefeitura provê acesso gratuito à internet como alternativa aos vários canais pagos existentes nos EUA. ‘Existe o risco de as grandes empresas de telecomunicações tentarem dominar o sistema e é por isso que vemos com preocupação qualquer ação desse tipo de tentar bloquear acesso, mesmo que seja a um microssite’, diz ele.

Leia mais sobre o caso Youtube em www.folha.com.br/circuitointegrado’

Rodolfo Lucena

Superproteção traz ainda mais danos

‘A internet considera perniciosos os controles e as interferências governamentais, e os internautas sempre dão um jeito de contornar as restrições, ensina Susan Crawford, professora de direito cibernético e direito das comunicações na Cardozo Law School, em Nova York, e diretora da Icann, a entidade internacional que coordena a internet. Em entrevista realizada por telefone, na quarta-feira, Crawford, 43, adverte que os prejuízos à liberdade de expressão e de opção provocados pelo supercontrole da rede superam em muito seus eventuais benefícios. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

FOLHA – A internet pode ser controlada?

SUSAN CRAWFORD – A internet, em si, é apenas um acordo para que todos os computadores falem uma determinada linguagem. O acesso à internet pode ser controlado, e os governos podem determinar aos provedores de internet que estão fisicamente baseados em seus territórios que bloqueiem o acesso a determinados sites. A maioria dos países civilizados não faz isso. Nos EUA, uma ação governamental como essa seria considerada ilegal, uma violação à Primeira Emenda, que garante a liberdade de expreessão.

FOLHA – Como os governos devem proceder em relação aos crimes na internet?

CRAWFORD – Nos Estados Unidos, o governo tem o poder de determinar a retirada de um site do ar se há pornografia infantil ou material obsceno no site. Mas não tem o poder de fechar um site pornográfico, porque isso faz parte da liberdade de expressão. Além disso, bloquear um site não tem sentido, é vão, pois, como aconteceu no caso da modelo brasileira, o vídeo fica aparecendo em outros sites e de outras formas…

FOLHA – Cada ação governamental pode ser burlada de alguma forma…

CRAWFORD – A internet considera a interferência como algo pernicioso e dá sempre um jeito de contorná-la.

FOLHA – Mas essas infrações não podem ser rastreados?

CRAWFORD – As agências policiais do mundo todo colaboram entre si para rastrear as origens dos vírus. Muitas vezes, têm sucesso. Depende. Nem sempre prendem o criminoso, mas conseguem rastreá-lo. A mensagem mais importante e profunda aqui é a que os danos causados pela tentativa de proteger as pessoas perfeitamente on-line supera em muito -muito mesmo- qualquer benefício que possamos ter com a suposta proteção que as polícias ou governos possam nos dar contra alguns embaraços ou crimes. Veja bem: se o acesso for controlado tão rigidamente para que o governo possa pegar os bandidos, isso tem terríveis conseqüências para os cidadãos comuns. Eles não terão a liberdade de escolha, a liberdade de opções de que precisam. A resposta deveria ser permitir que as empresas e os indivíduos, que formam a periferia da rede, encontrem formas de se proteger, em vez de a parte central da rede proteger os outros.

FOLHA – Ou seja, cada um deve ser responsável pela defesa de seus arquivos e pelo que faz na rede.

CRAWFORD – O que precisamos fazer é ajudar as pessoas, treiná-las para que sejam capazes de fazer isso, instalar antivírus, configurar as defesas de seus programas de navegação na internet. Os indivíduos podem fazer isso sozinhos, com alguma ajuda. Isso requer educação e assistência, mas não controle governamental da internet.

FOLHA – Mas, quando um um indivíduo se sente ofendido, ele pode buscar apoio legal.

CRAWFORD – Pode. Mas também pode simplesmente ignorar a ofensa. Ou responder on-line. Há muitas formas de cada um mostrar o seu lado sem recorrer ao sistema judicial.

FOLHA – Às vezes, a disputa é desigual, de cidadãos contra empresas ou homens poderosos. Os jornais sempre foram alvo de processos…

CRAWFORD – Nós estamos num mundo muito diferente hoje em dia, uma era em que os jornais já não têm o monopólio da informação, das notícias. A legislação foi projetada para uma era em que havia um único megafone, um único amplificador, que era o grande jornal da cidade. Se, naquela época, um jornal dissesse algo que era falso ou difamatório, um cidadão comum não tinha aonde ir, porque os jornais eram tão poderosos. Hoje é muito diferente. No mundo on-line, há muitas formas de responder, de mostrar às pessoas que você foi ofendido ou tratado de forma incorreta. Nada disso exige o recurso à Justiça, porque hoje em dia cada um pode ser um editor.’

João Pereira Coutinho

Saddam versus Cicarelli

‘A vida não está fácil para os internautas. Leio sobre o episódio da suspensão do célebre vídeo de Daniella Cicarelli numa praia espanhola. Por que numa praia espanhola quando Portugal estava mais perto? Mistério. Divago. No momento em que Cicarelli desaparecia dos radares, os internautas elegiam o vídeo da execução de Saddam como um dos mais vistos do YouTube.

Foram milhões de visitas para espetáculo tão pobre, bárbaro e repulsivo. Chamem-me moralista. Mas quando se proíbe um pouco de pornografia ‘light’ e se aplaude a pornografia mais ‘hard’, algo está errado. Entre Cicarelli e Saddam, o mundo prefere um homem com bigode.

Bem sei que o leitor acabou de torcer o nariz. Não negue. Eu vi. Será possível, pensa o leitor com seu moralismo inflamado, comparar o sexo e a morte? Não, leitor. Possível, não. É inevitável. O sexo começa tudo o que somos. A morte termina com tudo o que fomos. Numa formulação mais respeitável, minha vontade seria escrever que o sexo e a morte são as duas únicas certezas dessa vida, embora nos últimos tempos o respeitável leitor tenha tido algumas dúvidas sobre a primeira. Não negue outra vez.

Por isso a pornografia é importante: eu entendo o que leva um adolescente, ou um adulto em fase adolescente, a procurar pornografia. Fenômeno de compensação: dois corpos em fornicação maquinal sempre servem como aperitivo. Sobretudo na ausência de pratos principais. Masturbação não é um vício solitário. É uma espécie de ‘ménage à trois’ entre o sujeito, a mão do sujeito e um fantasma imaginário, que se deseja presente. Satisfaz. Não convence.

Exatamente como as vidas seguras e higienizadas do Ocidente moderno. Satisfazem. Não convencem. Sim, tivemos duas guerras mortíferas no século 20 que enterraram as ilusões sobre a natureza dos homens. Mas, apesar do sangue das trincheiras, e do Holocausto, e da miséria material e humana que os conflitos arrastaram, a verdade é que a violência foi recuando das nossas vidas. Converteu-se na exceção da regra e não, como acontecia nas sociedades dos nossos antepassados, em parceiros onipresentes. Talvez na Somália ou no Sudão as coisas não sejam bem assim. Ou no Iraque. Ou -voz baixa, alguma tosse- no Rio e em São Paulo, quando a criminalidade mostra as garras. Mas vocês percebem a idéia: as nossas vidas estão mais seguras, não menos. E tanta segurança acaba fatalmente por cansar.

Pior: cansa e não consegue eliminar um certo gosto por violência e adrenalina, pulsão primitiva que a civilização reprime mas não destrói completamente. Não é preciso ler Freud a respeito. Basta olhar em volta: quando os adultos se multiplicam em desportos radicais, eles não se limitam a cansar o corpo. O corpo é um detalhe. Eles procuram derrotar o espírito: esse tédio crescente que sempre foi o grande terror dos homens modernos.

E um terror, por definição, tem de ser exorcizado. Assistimos ao vídeo de Saddam e consumimos pornografia com uma voracidade crescente para compensar o que não temos: violência e sexo. E, compensando, transgredimos o que somos: criaturas seguras e, nas sociedades urbanas e pós-industriais, crescentemente solitárias.

Espreitar pelo buraco da fechadura é sentir mexer por dentro (ou, no caso da pornografia, por fora) um músculo que julgávamos adormecido.’

Cláudia Trevisan

Na China, ‘dissidentes da rede’ vão presos

‘Com a população de internautas que cresce mais rapidamente em todo o mundo, a China se debate entre o livre acesso à informação proporcionado pela rede e a censura oficial, que bloqueia milhares de sites e condena à prisão os chamados ‘dissidentes da internet’.

Na China, é quase impossível abrir páginas com conteúdo ‘sensível’, conceito amplo o bastante para incluir de Dalai Lama e Falun Gong à independência de Taiwan -temas vistos pelo governo como uma ameaça à unidade e estabilidade nacionais.

O método mais comum de censura é o bloqueio de páginas, feito a partir de endereços e listas de palavras-chave, que mudam à medida em que surgem novos eventos ‘sensíveis’. Também há um exército de censores, estimado em 30 mil, que monitora sites populares, tira do ar textos críticos ao governo e chega a controlar os chats de discussão on-line.

Isso em um país que tem a segunda maior população de internautas do mundo, 132 milhões de pessoas, e o espantoso número de 37 milhões de blogs.

O governo lança mão de todas as armas tecnológicas a seu dispor para tentar manter o controle, mesmo diante da natureza fluida e da rapidez de propagação da internet.

A censura também atinge as mensagens enviadas por telefones celulares, uma das mais populares formas de comunicação na China, que tem o maior número de celulares do mundo, 420 milhões. Como na internet, o controle é feito por palavras-chave. As autoridades planejam ainda exigir que os bloggers se identifiquem com seus nomes verdadeiros.

A pornografia é outro alvo na campanha contra a ‘degeneração’ da sociedade chinesa. Nos dois últimos anos, centenas de sites pornográficos foram fechados e o criador do maior deles, Chen Hui, foi condenado à prisão perpétua em 2006.

Para ter acesso ao enorme mercado chinês, empresas estrangeiras se submetem às exigências governamentais relativas à censura. O Google, por exemplo, incorporou a seu mecanismo de busca os bloqueios a páginas e temas proscritos pelas autoridades de Pequim.

A Microsoft tirou do ar um blog do MSN chinês, por determinação do governo. E o Yahoo forneceu informações que permitiram a identificação do autor de um e-mail contrário aos interesses oficiais.’

Mariana Barros

Do ponto de vista técnico, web pode ser controlada

‘A regra é que a filtragem de conteúdo é o pior dos caminhos. A opinião é de Ronaldo Lemos, diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito da FGV-RJ, membro do Creative Commons Brasil e presidente do iCommons (www.icom mons.org) -voltados ao compartilhamento de conteúdo on-line.

Ele afirma que, ao contrário do senso comum, a rede pode, sim, ser controlada. ‘Os dados trafegam por backbones, as espinhas dorsais da internet. Um filtro em um backbone consegue impedir o acesso a ele por uma determinada rede de computadores, como a brasileira’, explica Lemos.

Segundo o especialista, o principal ponto de controle da internet são os provedores, que, por serem facilmente identificáveis, são o alvo preferido de ações judiciais. ‘O Brasil não possui legislação que defina as responsabilidades do serviço.’’

Lúcio Ribeiro

Last.fm ganha versão em português

‘Yes, nós temos Last.fm. Atraído pela grande quantidade de fãs de música no Brasil, o site inglês acaba de fincar sua bandeira da ‘revolução musical socializada’ no país, lança em português sua famosa estação de rádio online personalizada e prepara para um futuro breve a instalação de um escritório comercial em São Paulo. Uma mistura de rádio com MySpace, Orkut e Wikipedia, o endereço já fala nossa língua na hora de tocar música conhecida, recomendar canções e artistas novos e formar uma comunidade de troca de idéias sobre bandas, canções e shows baseados em um gosto comum.

‘Percebemos que no Brasil tem muita gente interessada em música e uma intensa produção musical de qualidade’, explica, em entrevista à Folha, o britânico Martin Stiksel, um dos fundadores do Last.fm.

‘Nós somos a rádio online mais popular nos EUA, no Reino Unido e na Alemanha, entre outros. No meio desse contingente de ouvintes, percebemos que o Brasil está em nono lugar entre os que mais nos freqüentam. Nós realmente achamos que a tradução para o português vai atrair ainda mais brasileiros para o Last.fm.’

‘Adoro’ e ‘odeio’

O Last.fm tomou forma em 2003. Enquanto um geniozinho inglês terminava seu projeto final na faculdade de ciências da computação -criando um programa que armazenava diferentes sistemas operacionais de tocadores de música-, quatro amigos (tão gênios quanto) divididos entre Alemanha e Áustria criavam uma comunidade de música na internet acoplada a uma estação de rádio virtual. Usando botões de ‘adoro’ e ‘odeio’, os usuários poderiam customizar suas páginas de acordo com suas preferências musicais.

Esse foi o começo do Last.fm. As duas turmas viram algo em comum em seus projetos, montaram juntos um escritório em Londres, e, em 2003, deram vida ao Last.fm, com cada site fazendo sua parte. Em 2005, os dois sites viraram um, e, em 2006, já virou febre. E em 2007 chega ao Brasil.

Até a música independente brasileira está mapeada pela Last.fm. Se você formar uma estação de rádio a partir da banda Bonde do Rolê, por exemplo, ouvirá uma seqüência com Los Hermanos, Cachorro Grande, Moptop, Jumbo Elektro. É botar Caetano Veloso para ouvir Cartola, Tom Zé, Mutantes, Gil e Tim Maia.’



TELEVISÃO
Lucas Neves

‘Monk’ faz rir de agruras de detetive

‘Olhos de lince, fixação pelo detalhe e capacidade de dedução ímpar fazem de Adrian Monk um ás da investigação criminal, mas também catalisam a condição psiquiátrica que põe em risco sua carreira policial: o transtorno obsessivo-compulsivo.

O agudo senso de observação pode garantir que ele seja o único a vislumbrar um assassinato onde os outros vêem suicídio -desde que assimetrias não surjam em seu campo de visão, atordoando-o. ‘É uma bênção e uma maldição’, resume o protagonista de ‘Monk’, em um dos episódios da primeira temporada, que acaba de ser lançada em DVD.

As histórias iniciais acompanham o esforço de Monk para ser reintegrado à polícia de San Francisco. O desligamento ‘oficial’ (já que, na prática, é ele quem soluciona muitos casos da corporação, na condição de consultor) ocorreu pouco após a morte de sua mulher. A razão? O agente começou a apresentar sintomas de TOC e exibir uma farta galeria de fobias.

Em virtude disso, vale o aviso: chame o homem para elucidar as ocorrências mais enigmáticas, mas certifique-se de que a cena do crime (ou o criminoso em fuga) esteja distante de escadas, rodas-gigantes e elevações afins. Para desespero de sua assistente Sharona (a ótima Bitty Schram) e de seu ex-chefe, o capitão Stottlemeyer (Ted Levine), Monk tampouco dá expediente perto de grandes concentrações humanas ou ambientes que não tenham sido previamente ‘higienizados’ com germicidas.

As manias e esquisitices do detetive andam transcendendo a ficção. Na semana passada, em entrevista por telefone à imprensa internacional da qual a Folha participou, Tony Shalhoub, intérprete de Monk, contou que recentemente se viu encucado com a limpeza de cardápios de restaurantes. ‘Me dei conta que milhares de pessoas manuseiam os menus todos os dias. Eles não os lavam, certo? Agora tenho que viver com essa dúvida pelo resto da vida’, brincou, para completar em seguida: ‘No início [em 2002], via o Monk como um ‘outsider’ bizarro. Mas quanto mais penso nos problemas dele, mais normal ele me parece’.

Normal, para ele, virou colecionar láureas nas principais premiações norte-americanas: sua estante tem três Emmys e um Globo de Ouro (que pode ganhar companhia amanhã à noite). Às vésperas da estréia da segunda parte do quinto ano de ‘Monk’ nos EUA (ainda sem previsão de exibição no Brasil), o ator disse que o diferencial da série é o fato de os roteiros não se restringirem ao ambiente de trabalho, ‘levarem os personagens para casa’.

‘Isso permite desenvolvê-los e introduzir humor.’ O foco nas tramas pessoais, intensificado nas temporadas mais recentes, não é unanimidade. Em fóruns virtuais, alguns fãs reclamam que o segmento ‘criminal’ anda capenga. No DVD do primeiro ano, a impressão é outra: apesar da estrutura um tanto repetitiva (Monk começa a investigar um crime; as fobias atormentam-no; ele soluciona o caso), os mistérios são bem amarrados, as resoluções, verossímeis, e as agruras de Monk, dolorosamente impagáveis.

MONK – 1ª TEMPORADA

Criador: Andy Breckman

Distribuidora: Universal (R$ 99,90)’

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Clique nos links abaixo para acessar os textos do final de semana selecionados para a seção Entre Aspas.

Folha de S. Paulo – 1

Folha de S. Paulo – 2

O Estado de S. Paulo – 1

O Estado de S. Paulo – 2

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