Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Ganha o melhor discurso

Ao receber a notícia sobre a ressurreição de Jesus, Tomé deu uma de ‘delegado’: ‘Se eu não vir o sinal dos cravos em suas mãos, e não puser o dedo no lugar dos cravos, e não puser a minha mão no seu lado, de maneira nenhuma acreditarei.’ (Livro de João, capítulo 20). O procedimento desse discípulo seguiu a maneira governista, aquela que exige a prova, ou nada feito. Mas Jesus, ao dizer ‘(…) bem-aventurados os que não viram e creram!’, fez nascer um tipo de enunciado que dispensaria a experiência e a prova material como critérios para a verdade, e assim potencializou a palavra, fazendo do discurso a instância sagrada de um tipo de verdade.

Mas, religião à parte, nada há de mais desastroso para uma sociedade quando suas formas religiosas, uma vez dessacralizadas, são transplantadas para os estatutos da vida laica, destituídas dos fins anteriormente propostos, tendo em vista outros objetivos que não o sagrado. A expressão ‘bem-aventurados os que não viram, mas creram’, proferida por Jesus a Tomé, seguida pela de Paulo, ‘a fé vem pelo ouvir’, base de uma verdade discursiva, participou culturalmente de uma forma de potencializar o marketing ocidental a ponto de ele deixar de referendar objetos e de tomá-los segundo a capacidade de divulgação: isso está na base cultural do Ocidente, que faz a marca ser tão valorada quanto o próprio produto, quando não vale até mais (como a Coca-Cola).

Para os gregos, a verdade era alethéia, isto é, aquela que pudesse ser evidenciada, constatada, percebida. Para os romanos, a verdade passou a ser veritas (talvez pela influência do cristianismo), que tornou mais evidente a verdade da palavra, potencialmente anunciada no ‘ide por todo o mundo e pregai’ – uma grande semelhança com um tipo de marketing, que dispensa a experiência ou o que se chama de test-drive. Agora está pronto: a verdade, para o Ocidente, não está garantida como genuína simplesmente pela exposição de provas, mas principalmente pela capacidade que as pessoas têm de desenvolver um discurso que produza fé nas pessoas, fazendo-o adentrar os anais da aceitação popular.

Provas à parte

Focando essa questão na esfera da política, a potência discursiva mais ainda se sobrepôs a qualquer outra forma de construção de uma verdade. Ou seja, na política – como em nenhuma outra área da vida ocidental – a verdade da fala passou a ter uma exacerbada autonomia, a ponto de o marketing encontrar sua alma gêmea mais na atividade política que na divulgação de mercadorias. Uma olhada na corrupção atual prova isso.

O certo mesmo é que nessa área, principalmente com a participação dos meios de comunicação, não são necessariamente os fatos, agora, o que autentica a veracidade, mas sim a potência que um falante tem de gerar fé pública, isto é, um convencimento até mesmo subliminar e consistente, a ponto de dispensar definitivamente a prova material do que é dito. Nesta ciranda entram outros fatores: a multiplicidade da informação, a velocidade da transmissão, a produção e a seleção de imagens destacadas do fator tempo, tudo isso faz alicerce para a edificação de um aceite popular, que em miúdos significa o ‘consenso’ conquistado entre a maioria, à base do aceite das massas populares (já que essa é a verdade, inquestionável e quantitativa para uma democracia).

A verdade da revista Veja foi lançada – envio de dólares de Cuba para a campanha do presidente Lula. Os efeitos do que tal revista divulgou não mais se resumem a uma exigência de provas, como quer o governo Lula. O silêncio ou a simples afirmação de que ‘é fantasia’ tudo o que foi divulgado em nada vai ajudar, principalmente para quem tem projeto de poder à vista. É preciso entender que na selva da política quem ganha é aquele que melhor discursa, seja para acusar, seja para defender – e provas à parte!

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Mestre em Filosofia Política, professor da Universidade Católica de Goiás e da Unip