No dia a dia, existem coisas importantes que são tratadas como insignificantes e coisas desimportantes que se tornam relevantes. Uma dessas acontece neste momento e diz respeito a uma simples campanha publicitária.
Simples? Será mesmo que os comerciais sobre roupa íntima feminina estrelados por Gisele Bündchen, atualmente no ar, nada são além do que é normal na propaganda, uma empresa tentando vender seu produto?
São, certamente, mais que isso, a medir pela polêmica que provocaram. Nem bem começou a veiculação, a Secretaria de Políticas para a Mulher (SPM), do governo federal, oficiou ao Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) solicitando sua suspensão. O argumento era de que a campanha é sexista e contribui para manter estereótipos negativos sobre as mulheres.
Mas a relevância maior do assunto está em que ele enseja uma discussão mais ampla, sobre o papel do Estado na sociedade, tanto em geral, quanto no Brasil de hoje. É por isso que continua em pauta, objeto de comentários, notas, charges e editoriais de nossos principais jornais.
Direito reconhecido
Na mídia brasileira, dominada por veículos assumidamente “liberais”, a reação à iniciativa da SPM foi de completo repúdio. Em coro, aproveitaram a oportunidade para atacar seu inimigo preferencial, o “lulopetismo”.
(O que será que querem dizer quando usam essa palavra, que eles mesmos inventaram e que nunca fez parte do vocabulário da política brasileira? O tal “lulopetismo” seria uma realidade nova? Consistiria em quê? Usando-a, acham que ridicularizam Lula e o PT?).
A acusação foi de “interferência estatal”. Segundo esses veículos, a SPM estaria procurando exercer o papel de “tutora”, através de um gesto que deixaria clara a ânsia controladora do “lulopetismo”.
Nas palavras do editorial de um jornal carioca, a posição de quem defende “um Estado forte, a pairar sobre uma sociedade incapaz de decidir o que é bom para ela”.
É a mesma “interferência” que haveria no comportamento da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), quando tenta impedir a propaganda de produtos nocivos à saúde. (Devem sentir saudade do “Homem de Marlboro”).
A mesma que faria parte do “coquetel ideológico” do “lulopetismo”, misturada com a utilização, na linguagem do governo, de expressões como “afrobrasileiro” e outras parecidas, típicas do que chamam, pejorativamente, “politicamente correto”.
Esse tipo de “liberalismo”, característico de alguns segmentos da direita brasileira e comum nessas redações, não existe mais no mundo moderno (salvo, talvez, entre os conservadores radicais americanos, do “Tea Party”).
Ele não admite o que foi feito, nas últimas décadas, para civilizar a economia de mercado e a sociedade capitalista, freando suas tendências mais negativas (prejudiciais, em última instancia, à sua própria sobrevivência).
São contra políticas que quase ninguém questiona nos países avançados, de discriminação positiva e ação afirmativa. Negam a validade de instrumentos como a fixação de cotas para corrigir desigualdades de acesso a políticas públicas fundamentais.
Consideram risível que o Estado reconheça o direito que as pessoas têm de ser chamadas de forma respeitosa. Condenam que agências como a SPM e a Anvisa questionem a liberdade de um anunciante dizer o que quiser para aumentar as vendas.
Velhas piadas
Ao solicitar ao Conar que suspenda os comerciais com a modelo, a SPM não conserta todo o sexismo que existe na propaganda brasileira. A questão é que esses vão além do “normal”: assumem um tom pedagógico e apontam o “certo” e o “errado”, mas deseducam.
Quem, de maneira provinciana, chama isso de “lulopetismo” deveria olhar para o resto do mundo. Ver, por exemplo, o Parlamento Europeu, onde se discute uma política de “tolerância zero” para com o uso de “insultos sexistas e imagens degradantes” na propaganda.
Por iniciativa de deputadas da Suécia (onde, tanto quanto se saiba, o “lulopetismo” não chegou), pretende-se, assim, evitar a cristalização de estereótipos de gênero, que impedem que a sociedade seja mais igualitária.
O tom patético nas críticas à iniciativa da SPM foi dado pela ideia de que ela negaria a “leveza de espírito e o bom humor” da “alma brasileira”. Como se houvesse apenas uma, monolítica e imutável, incapaz de aprender com seus erros, de evoluir e amadurecer.
Só se for para quem acha graça nas velhas piadas que ridicularizam mulheres, negros, indígenas, portugueses, nordestinos, homossexuais, loucos e deficientes.
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[Marcos Coimbra é sociólogo e presidente do Instituto Vox Populi]