Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Gol contra: esporte e imperialismo

Dada a repercussão, neste Observatório, da agressão do canal SporTV ao Paraguai (ver ‘O limite entre a graça e o deboche‘, por Carlos Brickmann, e ‘Paraguai, grosseria e preconceito‘, por Luciano Martins Costa), convém mantermos as antenas voltadas para a cobertura discriminatória dos mídia ao abordar contextos do ‘outro’, do ‘de fora’. Sobretudo porque nossa mídia será ‘anfitriã’ na próxima Copa do Mundo e, daqui até lá, vai traçar perfis de países cujas seleções estarão por cá.

Qualificar o discurso do SporTV de ‘nacionalismo’ não é incorreto, mas é uma análise incompleta. Creio que está mais para o que outrora aqui chamei de ‘dispositivo pós-colonial’, ou DPC, um tipo de construção retórica que visa à coerção das populações em torno de construções imaginárias ou de atos de dominação sobre territórios estrangeiros (ver ‘O Haiti e a recolonização ambiental‘). O desporto fornece exemplos recentes de como o DPC é uma elaboração discursiva que emerge sem críticas na mídia e visa a ‘subalternizar’ o ‘outro’ – e o que o fez SporTV é prática corrente, e preocupante.

Durante as Olimpíadas de Pequim, em 2008, o presidente do Comitê Olímpico Internacional, o belga Jacques Rogge, censurou a manifestação de alegria na comemoração de vitória de um atleta, o jamaicano Usain Blot, que respondeu à altura:

‘Não importa o que qualquer um pense ou comente porque eu sei que gosto de me divertir e é assim que eu faço. Eu sempre me divirto depois das corridas e as pessoas adoram. O que eu faço, faço por mim, pelo meu técnico e por meus fãs. Estou apenas mostrando minha personalidade’ (Folha de S.Paulo, 20/8/08).

‘Os homens mais corajosos’

É no futebol, esporte mais popular e internacionalizado em todo o mundo, que o DPC grassa tanto entre antigos colonizadores quanto entre antigos colonizados. Ao longo da História, não faltam exemplos do quanto os regimes coloniais e/ou totalitários se valeram do futebol para reforçar seus padrões nacionalistas (as seleções de Portugal, em 1966, a do Brasil, em 1970, a da Argentina, em 1978). E ainda hoje mantém-se a tendência de os governos tentarem capitalizar para si a popularidade das equipes ou de atletas (não sem a conivência pessoal de alguns destes) para reforçar determinada ação estatal ou a ocupação de território estrangeiro baseada em discurso tipo DPC.

Esse parece ter sido o caso de uma visita recente do ídolo de futebol inglês David Beckham às tropas do Reino Unido no Afeganistão. Em maio de 2010, o jogador compareceu a um dos acampamentos das tropas paramentado de militar e, sorridente, se deixou fotografar empunhando uma arma de grosso calibre. A edição portuguesa do jornal Destak, um ‘popular’ de linha editorial e circulação gratuita, destacou que a visita teve por finalidade ‘honrar a memória dos militares britânicos mortos naquele país. Uma vez diante do memorial de Camp Bastion, dedicado a todos aqueles que deram a vida pelo seu país, o jogador […] fez uma vênia em silêncio e depois […] disse ter privado com `os homens mais corajosos´ que já conheceu. Desde o início das operações britânicas, em 2001, 286 militares britânicos morreram no Afeganistão’ (Destak, 23/5/10).

Um city tour pela miséria

A atual seleção nacional de Portugal, em preparação para o mundial da África do Sul de 2010, protagonizou um episódio emblemático e significativo. Por iniciativa dos dirigentes da seleção, um major da Força Aérea Portuguesa ministrou palestra aos jogadores durante concentração no município de Covilhã, centro do país. ‘Ronaldo e companhia voltam à recruta […]. O objectivo era fortalecer o espírito de coesão e camaradagem entre os jogadores’, noticiou o Público online de 28/5/10. A manchete do periódico desportivo lisboeta A Bola, de 29 de maio, era mais direta: ‘Todos para a `selva´!’ Durante a palestra, os jogadores trajaram vestimentas de soldados e tiveram a face pintada no estilo ‘camuflagem’, usado em geral para combates na selva. O evento ocorreu apenas dois dias depois de jogo preparatório contra a seleção nacional de Cabo Verde (placar 0 x 0), e antecedeu em quatro dias o ‘combate’ contra a seleção dos Camarões (também africana, 3 x 1 para Portugal) e em dez dias o jogo contra a seleção de Moçambique. Nota: todos os adversários eram seleções nacionais africanas. Mas na comunicação social não se registraram críticas a essa simulação, cujo tom, implicitamente, pode ser lido como a preparação para uma ‘guerra’, exatamente na África, sem maiores considerações de que foi nesse continente que seu deu a ‘guerra colonial’ que Portugal manteve de 1961 a 1974 contra suas antigas colônias (Angola, Cabo Verde, Guiné e Moçambique).

O futebol demonstra também como países outrora colonizados assimilam e reproduzem o DPC, com endosso da mídia. Em 2004, a seleção brasileira, então campeã mundial de futebol (Copa da Coreia e do Japão, em 2002), foi ao Haiti para jogar contra um selecionado local, em Porto Príncipe. Celebrado na imprensa brasileira como o ‘Jogo da Paz’, e por melhores que fossem as intenções da organização e dos jogadores, a exibição ocorreu na sequência do estabelecimento de tropas do exército brasileiro a serviço da ONU. Inclusive, coube ao exército a recepção aos jogadores na capital haitiana:

‘A seleção foi dividida em três tanques de guerra e seguiu para o estádio. A imprensa foi em outros dois blindados e saiu atrás. Foi um city tour pela miséria do país. Milhares de pessoas foram às ruas para recepcionar os jogadores. De bicicleta ou correndo, os haitianos tentavam acompanhar os ídolos brasileiros. A pobreza impressionava. Assim como o carinho da população local’ (Globoesporte).

Ciclo de auto-impedimento do gozo

Ainda hoje, o exército brasileiro mantém efetivo militar no Haiti, ação que é o principal argumento do país para reivindicar um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Perpetuar o DPC via discurso jornalístico esportivo, como nos casos citados acima e como fez o SporTV, é prova de como pode transbordar e extrapolar o campo da dominação econômica – o que Rui Marini chamou de ‘subimperialismo’ (ver texto de Marini, de 1977). Não criticar o ‘sumbimperialismo’ da nossa mídia induz ao engano mesmo mentes mais lúcidas, como o ex-jogador Sócrates, colunista da CartaCapital, que em sua última coluna afirmou ser o Brasil ‘uma nação pouco habituada ao nacionalismo’.

Ademais, a crença absoluta na permanente superioridade do Brasil no futebol é uma invenção que dissimula e projeta no ‘outro’ as frustrações nacionais, calcadas no sofrimento de matriz cristã, que impede a celebração de qualquer conquista que não seja a da liderança absoluta. Assimilando o DPC, os adeptos do futebol brasileiro entram num ciclo de auto-impedimento do gozo e contêm seu enorme potencial de alegria, o que não se vê em outros países. Afinal, mesmo não vencendo a Copa, as seleções da Holanda, Paraguai, Uruguai e Argentina foram celebradas e recebidas com festa por suas populações. Bem diferente do que se viu por aqui.

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Jornalista, historiador e doutorando em Pós-Colonialismo e Cidadania Global na Universidade de Coimbra, Portugal