Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Grande mídia ignora distensão na guerrilha latino-americana

A grande mídia, em seus editoriais – O Estado de S.Paulo e a Folha de S.Paulo – esqueceu de destacar o óbvio, ou seja, que, aos trancos e barrancos, começou, efetivamente, com a libertação das duas reféns prisioneiras das Farc, Clara Rojas e Consuelo Gonzales, uma distensão política guerreira latino-americana, por meio de intermediação do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, em negociação com o presidente da Colômbia, Álvaro Uribe.

A distensão foi imediatamente acompanhada de saudações aos dois governantes pelos líderes políticos mundiais, com destaque para o porta-voz da Casa Branca, Tom Casey, que elogiou o gesto de Chávez, tido como inimigo figadal do presidente W. Bush. Não significa panacéia capaz de acabar com os conflitos entre o governo da Colômbia e os guerrilheiros, que se arrastam há quatro décadas, mas tratou-se, evidentemente, do primeiro passo. Tal fato político gritante foi escondido pelos editorialistas.

O presidente Álvaro Uribe agradeceu a Chávez e ressaltou que novas negociações continuarão para alcançar novas libertações de cerca de 700 prisioneiros que ficaram para trás, entre eles a ex-candidata Ingrid Betancourt, franco-venezuelana, e os três norte-americanos, Marc Gonsalves, Keith Stansell e Thomas Howes. Tal agradecimento demonstrou sua disposição de continuar a distensão. Nem nisso os brilhantes editorialistas enxergaram algum propósito distensionista.

Promotores do terror

Uribe, ao contrário, viveu tal gesto e percebeu o valor e a importância de ir adiante nessa linha traçada pelas negociações empreendidas em parceria com seu colega venezuelano. Ambos, que têm lá suas divergências político-ideológicas e vivem dando estocadas um no outro, desvestiram-se das idiossincrasias pessoais, a fim de dar vazão ao interesse maior, expresso na possibilidade concreta de avançar rumo à paz na Colômbia e, por extensão, em toda a América Latina.

O que fizeram o Estado de S.Paulo e a Folha de S.Paulo representa miopia pura relativamente ao que é fundamental, para dar lugar ao acessório.

O Estadão, com faca entre os dentes, sangrando, saiu com as repetidas adjetivações contra o presidente venezuelano, indagando, como é do direito dos que têm dúvida, sobre as reais motivações do gesto chavista. Deixa entrever o grande jornal que o titular venezuelano teria promovido algo, quem sabe, com o dinheiro farto do petróleo, para atrair os farquistas, também, envolvidos com o narcotráfico. Deixou no ar que Chávez e as Farc jogam, juntos, com os narcotraficantes.

Já a Folha, do mesmo jeito, voltada para intensificar críticas ao líder venezuelano, considerou absurda a proposta chavista de que não se deve considerar as Farc, fundamentalmente, um movimento terrorista, posição, igualmente, chancelada pelo Estadão. Este destaca que, salvo Cuba e Venezuela, orientados por governos de esquerda, os demais consideram os guerrilheiros, nascidos dos movimentos do Partido Comunista Colombiano há 43 anos, promotores do terror.

Oportunidade política

Esqueceram os editorialistas dos dois jornais de destacar que o governo brasileiro não vai fundo nas acusações no sentido defendido por eles porque, evidentemente, há que se jogar com argumentações diversas relativamente ao fato. As posições absolutas dos dois editoriais denotam faltam de inteligência para ver a realidade em sua dualidade dialético-dinâmica-relativa, e não meramente mecanicista, que descarta flexibilidade.

Como a grande mídia nacional sempre esteve de costas voltadas para a América Latina, desinteressada dos problemas dos cucarachos, como gosta de classificar os latino-americanos de forma geral, graças ao preconceito determinado pela visão cêntrica dos países ricos em relação aos pobres, não se pode confiar inteiramente nos seus critérios, eivados de perversões e inversões ideológicas.

Não se trata, aqui, de discutir com os dois editoriais, publicados no sábado (12/01), mas de ressaltar que os preconceitos e os ódios dos teleguiados editorialistas das orientações de Washington bloqueiam a capacidade de discernimento quanto ao real concreto em movimento de interatividade política.

O próprio presidente Álvaro Uribe, que move guerra incansável contra as Farc, mediante apoio popular, dado nas últimas eleições, em 2006, quando foi reeleito com 60% dos votos dos colombianos, não deixou por menos. Aproveitou não apenas para agradecer e elogiar Hugo Chávez, mas para ressaltar a oportunidade política que o fato, historicamente, lhe abriu.

Guerrilha e Estado terrorista

Evidenciou-se que, por mais que a guerra continue, não será fácil alcançar uma vitória unilateral. A entrada de Chávez na negociação, solicitada pelas Farc, com concordância de Uribe, mostrou essa lógica implacável.

Ressalte-se ainda que os governos argentino e brasileiro estiveram sempre presentes no processo negociador e continuarão nele como determinante na ampliação da distensão político-guerreira.

Os métodos dos guerrilheiros, sem dúvida bárbaros, ao acorrentarem os prisioneiros, visto que não existem celas na selva, como ocorre nas cidades, precisariam, igualmente, ser comparados com os métodos dos governos no tratamento dado aos partidários de esquerda radical na América Latina – tanto na Colômbia, como na Argentina, Brasil, Uruguai, Paraguai, Chile, quando a democracia era um sonho.

Os Estados, nas periferias capitalistas, nem sempre foram isentos de serem caracterizados, também, como terroristas. Buscar motivações para concluir que os terroristas criaram o Estado terrorista ou inverso, que o Estado terrorista é que criou os guerrilheiros, apenas demonstraria que a tese cria a antítese que busca a síntese.

Preconceitos e objetividade

Os dois lados dispõem de suas respectivas razões e defeitos históricos no compasso da história latino-americana, marcada, cruelmente, por constituir-se em periferia capitalista, determinada pelos interesses do capitalismo cêntrico, dominador, expansionista, colonizador. Tiradentes, nesse sentido, teria sido tremendo terrorista aos olhos dos editorialistas do Estadão e da Folha, enquanto o governo de Portugal representaria a razão sob a qual se teria que rezar.

O comportamento do governo democrático norte-americano no tratamento dos prisioneiros terroristas nas prisões, nos Estados Unidos, é, sem maiores rodeios, terrorista, também. Conseqüentemente, não se poderia taxar o governo dos Estados Unidos de terrorista, assim como as Farc, do mesmo modo, teriam que ser classificadas de forma relativa e não absoluta pela mídia, quanto ao terrorismo político que praticam. Toda a ação, como ensina a física, resulta em reação contrária com idêntica força em meio às circunstâncias diferenciadas.

O maniqueísmo midiático tupiniquim não apreende porque toma partido. Se é para tratar os adversários, a coisa funciona na base do radicalismo. No trato dos aliados, a situação muda de figura.

Ainda que seja dessa forma que trabalham os editorialistas da grande mídia, atentos às visões parciais dos seus chefes, dominados e conduzidos pelo pensamento mecanicista-positivista, determinados a enxergar a realidade com os olhos que lhes convém, a inteligência teria – teria! – que desprender-se um pouco dos preconceitos para mostrar uma certa objetividade na análise dos fatos políticos.

Participação de Chávez

Tanto os venezuelanos como os colombianos, sem falar nos povos em geral, que acompanharam os fatos nos últimos dias, perceberam o que os editorialistas dos dois grandes veículos paulistas não vislumbraram, vale dizer, o lead da notícia, o relaxamento do radicalismo político de lado a lado.

Prejudicou essa capacidade de visão a antivisão midiática exposta no esforço inútil de personalizar os fatos em vez de despersonalizá-los para melhor entendê-los. Foi dada prioridade à não-abrangência maior de percepção.

Parece que os editorialistas tiveram, apenas, os ouvidos voltados para as declarações do porta-voz da Casa Branca, que se esforçou ao máximo para diminuir a participação política de Hugo Chávez no episódio. Se os três norte-americanos – Marc Gonsalves, Keith Stansell e Thomas Howes –, sob orientação das Farc, solicitarem a intermediação de Chávez para se livrarem do cativeiro, a mídia ficará mal, porque, evidentemente, sabe que não poderá apelar para W. Bush.

Sujeitos objetivados

O que, naturalmente, está por trás das posições da grande mídia brasileira-washingtoniana é o conteúdo oculto, porém latente, que não pode nem deseja ser expresso.

Trata-se de ver que a distensão política contida na negociação venezuelana-colombiana proporcionará clima mais amplo de negociação política em toda a América do Sul, capaz de permitir o avanço da união sul-americana nos campos político-econômico-social.

Ela abre espaço mais largo para discutir o parlamento sul-americano, o banco central sul-americano, a moeda sul-americana, as políticas sociais sul-americanas, os investimentos na infra-estrutura sul-americana, enfim, a integração econômica e política total do continente, no momento em que o dólar balança no cenário internacional por força das bolhas especulativas e dos déficits comercial e orçamentário dos Estados Unidos.

A união sul-americana não é interessante e não tem merecido uma visão despreconceituosa da grande mídia, justamente porque ela tem seu foco no preconceito, ora contra posições de grupo, ora contra posições individuais dos governantes. Joga com essas questões acessórias em detrimento dos posicionamentos estratégicos. Os editorialistas pensam como objeto, e não como sujeito. São, essencialmente, sujeitos objetivados.

Os ideólogos da guerra

A remoção da guerra de guerrilha por força dos acontecimentos distensionistas em marcha contribui, efetivamente, para a continuidade de conquistas capazes de demonstrar aos próprios povos da América do Sul que as saídas se encontram na discussão política, e não nas guerras fratricidas que, efetivamente, constituem também posições políticas.

Os guerrilheiros fizeram dos seqüestros armas políticas para impor seus interesses bloqueados pelas ações governistas. Inicialmente, eles não foram eficazes, mas, agora, com a expansão exagerada, envolvendo personagens políticos que mobilizam posições internacionais, como é o caso de Ingrid Betancourt, a coisa mudou de figura, envolvendo líderes políticos sul-americanos, europeus e norte-americanos. Na prática, o processo internacionalizou-se, daí não ter sido mais possível ser resolvido, tão somente, no plano interno, colombiano.

Sem perceber que a distensão está em marcha, mas ficando apenas nas questões miúdas, buscando equiparar o acessório ao essencial, a grande mídia descarta a política como arma de entendimento, para insistir na guerra que, naturalmente, atende aos interesses dos seus ideólogos maiores, os promotores das indústrias armamentistas, que não desejam uma América do Sul em paz.

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Jornalista, Brasília, DF